publicado dia 21/07/2022

Desafios de aprendizagem no Ensino Fundamental demandam mudanças na organização escolar

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A volta às atividades presenciais nas escolas de Ensino Fundamental foi muito aguardada por professores, estudantes e famílias, sejam aqueles que não tiveram acesso a qualquer trabalho pedagógico remoto ou aqueles que experimentaram formas de ensinar e aprender com mais autonomia e sentido. “Estávamos ansiosos para voltar e fazer algo diferente. Mas agora que estamos de volta ao presencial temos que cuidar para não voltar a fazer tudo como fazíamos sem aproveitar os aprendizados que tivemos no período de atividades remotas”, avalia Camila Fattori, coordenadora pedagógica na Comunidade Educativa CEDAC.

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São os estudantes mais uma vez enfileirados em salas, assistindo calados a uma série de aulas expositivas consecutivas, sem a possibilidade de trocar com os colegas ou de colocar a mão na massa e criar projetos que articulem os conhecimentos do currículo e os saberes do território. 

“Eles estavam cansados de estudar sozinhos, com saudades dos colegas, e quando chegam na escola e querem conversar, chamamos isso de indisciplina. Que outras maneiras podemos aprender juntos e a conversa pode fazer parte da construção do conhecimento?”, instiga Camila.

Conheça a formação gratuita do Itaú Social que apoia a garantia do direito à aprendizagem de todos os estudantes no contexto da pandemia.

Para Maria Thereza Marcílio, presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, o momento atual demanda um esforço de ruptura e recriação. “Há um apelo de mudança, porque não estamos tão seguros do nosso jeito de ser no plano econômico, político, social, educacional, ambiental. Está tudo em xeque, demandando esforço das escolas por outra educação e, portanto, outra sociedade. Demandando que a escola possa ser lugar de encontro, de vivências, de trocas, de escuta sensível e atenta. De diálogo entre os conhecimentos e sobre o que importa para os professores, estudantes, famílias e o presente, o mundo, a vida”, afirma. 

Confira, abaixo, orientações de especialistas e educadores(as) de como lidar com o contexto atual do Ensino Fundamental, que demanda olhar para os estudantes e suas famílias de maneira integral, garantindo direitos e condições para que possam acessar e permanecer na escola. Eles também trazem estratégias pedagógicas que podem engajar os estudantes com o aprendizado e promover aprendizagens mais significativas.

Busca ativa e Articulação Intersetorial

Todos os dias, Claudia Teresinha, coordenadora pedagógica da UEB Professor Mata Roma, em São Luís (MA), percorre a escola, de sala em sala, para saber quais estudantes faltaram. Em seguida, entra em contato com a família para saber o motivo e se precisam de algum auxílio. “Não deixamos passar nem um dia. Isso reforça a importância dos alunos estarem na escola e o nosso papel em apoiar a família e acionar a rede de proteção sempre que necessário”, afirma. 

Em Jundiaí (SP), a Secretária Municipal de Educação Tânia Mara busca fortalecer a rede intersetorial com o intuito de promover a busca ativa dos estudantes e também garantir outros direitos para além dos muros da escola. Com foco na proteção integral de alunos e famílias, a dirigente se articula às demais pastas para criar espaços esportivos nas zonas periféricas, promover acesso a instrumentos musicais, bibliotecas e projetos de teatro, além de atuar em prol da conscientização sobre a imunização e fomentar a promoção social de mulheres na comunidade. 

“Se a escola não tiver sucesso no processo de ensino e aprendizagem, deu errado para todo mundo. Nos interessa o sucesso da maioria, não de uma escola ou outra, mas para isso é preciso todo um território trabalhando junto”, destaca Tânia.

Acolhimento permanente

Na EMEF Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo (SP), a diretora Sueli Alves dos Santos conta que nota nos estudantes uma ampla perda do sentido da escola e, mais do que isso, da vida: “Muitos adolescentes estão deprimidos, ansiosos, e aí não têm como se organizar para estudar. Eles entram em conflito com mais facilidade, o que é outra característica da depressão”. 

Para além do aspecto emocional, fortemente impactado pelo distanciamento social e os lutos, as crianças e adolescentes também sofrem com o crescente retrocesso de direitos, sendo expostos a violências, como a diminuição da renda dos familiares, o trabalho infantil, além de mudanças de domicílio – em alguns casos, a perda da casa e o ingresso nas ruas – e a fome, que não para de crescer no país. Hoje, 125 milhões de brasileiros não têm garantia de que vão comer no dia; entre eles, 33 milhões passam fome, de acordo com a pesquisa da rede Penssan.

A expressão de conflitos na escola pode ser vista como resultado das múltiplas formas de violências a que estes estudantes estão submetidos em seus territórios e que os afeta subjetivamente e coletivamente. É nesse contexto que as práticas de acolhimento pontuais precisam ser ampliadas para se converterem em uma cultura de acolhimento nas escolas. 

Na EMEF Brigadeiro Faria Lima, os estudantes têm sido convidados a organizar assembleias para conversar sobre temas que eles próprios elencam como relevantes e foi instituído um grêmio estudantil. “Eles estão precisando falar e ser ouvidos. O que eles não precisam é pressão por resultados de aprendizagem”, reforça Sueli, lembrando que os mesmos cuidados também devem ser estendidos a professores, funcionários e famílias, que também foram amplamente impactados pela pandemia e pelo retrocesso de direitos.

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Eleger um professor tutor para acompanhar de perto um pequeno grupo de estudantes também pode ajudar a saber como eles estão em sua integralidade.

Crédito: iStockphoto

Na EMEF Espaço de Bitita, em São Paulo (SP), realizar rodas de conversa também foi o que ajudou a reconfigurar as relações. Juntos, conversam sobre respeito ao outro, à diversidade, as questões de convivência ou propiciam momentos livres para que o tema surja do próprio grupo. “Descobrimos angústias e lutos não resolvidos, muitos medos e sentimentos guardados do tempo de isolamento social, além de casos de violência, que encaminhamos para a rede de proteção”, conta Gabriela Rauseo Garcia, coordenadora pedagógica da escola.

Avaliação e acompanhamento do desenvolvimento dos estudantes

Embora costume estar mais presente no início do ano letivo, a avaliação diagnóstica pode ser uma grande aliada dos educadores se vivida no dia a dia – uma avaliação formativa e processual, que permita acompanhar o desenvolvimento dos estudantes e intervir sempre que necessário, sem deixar que isso ocorra apenas no final do processo.

“A ampliação das desigualdades de aprendizagem dos estudantes está muito marcada no território e a escola precisa estar atenta a isso para oferecer mais suporte a quem mais precisa”, diz Tiago Bartholo.

“É possível fazer uma roda de leitura, por exemplo, em que eles se desenvolvem como leitores e o professor já pode avaliá-los. Isso também otimiza o tempo do docente”, orienta Camila. O importante é que a atividade forneça elementos não só para o educador, mas também para os estudantes perceberem e acompanharem suas aprendizagens. “Também é interessante promover autoavaliações, porque o estudante passa a entender o que se espera dele, onde avançou e o que ainda tem por aprender”, acrescenta.

A partir da avaliação diagnóstica e das avaliações formativas que vão ocorrendo ao longo do ano, é possível planejar e replanejar o trabalho pedagógico de forma a garantir que a turma continue aprendendo. Nesse processo, vale uma atenção especial aos estudantes que não tiveram acesso ao ensino remoto e estão em territórios mais vulneráveis. 

“A ampliação das desigualdades de aprendizagem dos estudantes está muito marcada no território e a escola precisa estar atenta a isso para oferecer mais suporte a quem mais precisa e alcançar mais equidade”, explica Tiago Bartholo, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atua como professor no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Colégio de Aplicação.

O especialista também reforça a necessidade de olhar para os estudantes de maneira integral, não apenas para sua dimensão cognitiva: “Temos que compreender como os estudantes estão como um todo”, reforça. 

Garantia de condições para escolas e professores

Diante dos enormes desafios que se apresentam, desde promover aprendizagens até combater o trabalho infantil, por exemplo, professores e escolas não podem ficar desamparados. 

“A saída dessa crise passa necessariamente pela valorização da escola pública, que é onde estão a maior parte dos nossos estudantes, e isso significa, entre outras coisas, garantir mais recursos para a Educação”, defende Tiago. O especialista também indica que ampliar a carga horária, contratar mais professores e garantir formação continuada a eles são outras estratégias que também podem apoiar o trabalho na reabertura das escolas. 

“As Secretarias de Educação precisam acompanhar em tempo real, sem nenhum exagero de querer controlar tudo, a fim de guiar as políticas educacionais de forma a torná-las mais efetivas”, complementa Camila.

Escola com sentido demanda um currículo vivo

Um currículo é um documento basilar, mas isso não significa que ele seja intocável. “Um currículo é um chão para caminhar. Mas, para que tenha vida e sentido, ele precisa poder mudar. Ele deve refletir e responder a um tempo, um espaço, as experiências dos professores, estudantes e sua comunidade”, alerta Maria Thereza Marcílio. 

Para ela, mesmo antes da pandemia, já se fazia necessário interpretá-lo dessa maneira. Agora, com a necessidade de atender às demandas de aprendizagem dos estudantes no tempo disponível, Maria Thereza defende que isso se torna inadiável. 

“Nesse processo, é preciso garantir a participação de toda a comunidade escolar para que o currículo tenha sentido para essas pessoas e para a vida delas. Além disso, ele deve ser revisitado e ajustado sempre que necessário”, reforça Camila.

A pergunta norteadora que Tânia Mara, Secretária Municipal de Educação de Jundiaí (SP), costuma propor aos gestores e educadores na hora de pensar o currículo é como construí-lo de forma a ajudar os estudantes a estarem no mundo de uma maneira melhor. “Do contrário, para quê escola?”

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O currículo precisa ajudar os estudantes a estarem no mundo de uma maneira melhor.

Crédito: iStockphoto

Diante dos desafios planetários evidenciados durante a pandemia, as especialistas defendem que uma educação de qualidade precisa abordar questões como cuidados consigo, com o outro, com o território e a natureza, o que é viver em uma democracia e como a atuação individual e coletiva contribui ou não para a permanência deste sistema. “Para alcançar isso, é preciso que as atividades, áreas e saberes se articulem. Na vida, nada é estanque e isolado”, destaca Maria Thereza.

A questão da alfabetização e outras formas de ensinar e aprender

No Ensino Fundamental prevalece, entre os vários desafios, a questão da alfabetização, que tem preocupado professores, famílias e até as próprias crianças. Mas não se trata de um cenário incontornável. As experiências de duas professoras alfabetizadoras mostram um avanço significativo dos seus estudantes em relação à alfabetização e adaptação à rotina escolar. 

Já para o Ensino Fundamental 2, Camila Fattori sugere um trabalho colaborativo entre os professores alfabetizadores e das áreas, bem como entre escolas, para ampliar as oportunidades dos estudantes avançarem nos seus conhecimentos de leitura e escrita.  Ronaldo Rodrigues Alves Braga, analista de inovação e desenvolvimento do Instituto Gesto, que vem formando professores em quatro estados do país, afirma que uma estratégia utilizada e bem sucedida é fazer um esforço coletivo dos professores das áreas pela alfabetização. “Professor de Química, de Matemática, eles estão segurando o currículo e ajudando a alfabetizar os estudantes, porque não tem como avançar sem garantir isso primeiro”, ressalta. 

Confira algumas estratégias pedagógicas que podem apoiar a alfabetização e promover aprendizagens mais engajadoras e significativas para os estudantes: 

  • Criar diferentes agrupamentos

A partir do resultado das avaliações, é possível dividir os estudantes em grupos para que possam aprender uns com os outros. Podem ser duplas, trios ou grupos que são ora homogêneos, ora heterogêneos em suas potências e demandas de desenvolvimento. O importante é não usar essa estratégia para classificar ou rankear estudantes. “A escola é um espaço coletivo de aprendizagem em que um aprende com o outro”, diz Gabriela.

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“A escola é um espaço coletivo de aprendizagem em que um aprende com o outro”, diz Gabriela Rauseo Garcia.

Crédito: iStockphoto

  • Ampliar o tempo

Estender a jornada escolar dos estudantes pode ser uma forma de ampliar as oportunidades de aprendizagem, especialmente se o trabalho realizado neste período trouxer outras metodologias para promover o desenvolvimento integral dos estudantes e ocupar outros espaços, como bibliotecas comunitárias, museus e praças.

Na EMEF Campos Salles, uma das possibilidades é participar de oficinas. “Os estudantes vivenciam de forma prática o conteúdo do currículo que está sendo trabalhado com eles. Trata-se da criação de pequenos projetos interdisciplinares envolvendo Matemática, Português, Música, Artes, Inglês, entre outras”, relata Sandra Duda Mela, coordenadora pedagógica da unidade. 

  • Criar tutorias

Ao designar um pequeno grupo de estudantes a um professor que deverá acompanhá-los mais de perto, realizando conversas individuais ou em pequenos grupos, é possível ampliar o olhar sobre o processo de aprendizagem dos estudantes e observá-los em sua integralidade. As impressões do professor-tutor podem servir para compor a avaliação do estudante e fomentar as discussões do conselho de classe.

Nessas conversas, eles podem dialogar sobre o que o estudante mais tem gostado de aprender, de que outras maneiras ele aprende mais e melhor, como ele pode esclarecer suas dúvidas de forma mais autônoma e saber como vai a vida dele para além do portão da escola. “É uma conversa mais afetiva, de perguntar como ele está, como vai a família, como foi aquele dia de uma tal atividade para ele ou o que ele achou da última avaliação”, exemplifica Sandra. 

  • Usar metodologias mais ativas e tecnologias digitais

O mundo contemporâneo demanda sujeitos capazes de articular diferentes saberes e com posturas mais críticas e ativas frente aos desafios de seus contextos. “Por isso é interessante trazer questões que os estudantes observam no seu cotidiano, no seu bairro, e propor metodologias em que eles possam ser mais ativos em relação à construção do seu conhecimento, enquanto o professor atua como mediador”, explica Tiago.

As tecnologias digitais, enquanto um meio para concretizar projetos, fazer pesquisas e trocar informações, respaldadas pela Educação Midiática, também podem apoiar no engajamento ativo dos estudantes e em seu letramento digital. “As Secretarias de Educação precisam ampliar o acesso às tecnologias digitais porque quem não tem esse acesso acaba sendo mais prejudicado e excluído socialmente”, lembra Camila.

  • Aproveitar espaços naturais e ao ar livre 

Além do contato com a natureza ser um direito das crianças e adolescentes, o uso de outros espaços para além das salas de aula favorece as aprendizagens e o desenvolvimento integral dos estudantes. “Promover atividades ao ar livre e em contato com a natureza também facilita o acolhimento e o restabelecimento dos vínculos entre todos”, lembra Tiago.

Na EMEF Espaço de Bitita, por exemplo, a coordenadora pedagógica conta que o uso de ambientes externos, logo no começo do dia, para brincadeiras, rodas de conversas e momentos de leituras foi fundamental para estreitar laços entre os estudantes, professores e com a aprendizagem, e também para ajudá-los a se concentrar nos estudos em seguida.

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Aproveite espaços ao ar livre para promover brincadeiras, atividades e aprendizagens.

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  • Criar roteiros de aprendizagem

Na EMEF Espaço de Bitita, a partir do Ensino Fundamental 2, os estudantes aprendem por meio de roteiros de aprendizagem bimestrais. Embora sejam acompanhados pelo professor-tutor e os educadores de cada área do conhecimento, os estudantes é que são responsáveis por conduzir seu processo de aprendizagem.

“Nos roteiros, articulamos os conteúdos do currículo às questões do território, como os rios que cortam o bairro, a vida e obra da escritora Carolina Maria de Jesus, que morou aqui, e questões como xenofobia, já que temos muitos imigrantes na região”, conta Gabriela.

Educação Infantil: desafios e oportunidades no retorno das crianças à escola

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