publicado dia 08/11/2019

Atual proposta de formação entende professor como um executor, diz Selma Garrido

Reportagem:

O que a formação de professores precisa oferecer para os futuros educadores? E como as políticas educacionais têm respondido a essa questão ao longo das últimas décadas?

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, Selma Garrido Pimenta, professora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), avalia o que é preciso para formar um professor para os desafios da escola brasileira atual. 

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A especialista também analisa a proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica, que agora aguarda homologação do Ministério da Educação (MEC).

Confira os principais trechos da entrevista.

Centro de Referências em Educação Integral: Qual é o educador que o Brasil precisa formar para, junto com melhorias nas condições do trabalho docente e redução das desigualdades que assolam o país, melhorar a qualidade da educação?

Selma Garrido Pimenta: Durante muito tempo se entendeu que ensinar significa transmitir conhecimento. O professor era o detentor de um saber que ia passar para o aluno que, por sua vez, era tido como um receptáculo que ia absorver e depois repeti-lo para mostrar que tinha aprendido. 

Mas esse método não leva o aluno a se apropriar do conhecimento para ler o mundo e desenvolver sua capacidade de pensar. As pesquisas a partir dos anos 1980 mostram que, na verdade, ele gera alunos passivos. Ensinar e aprender deve ter como finalidade formar seres que pensam, construam conhecimento e não só reproduzem. E isso só vem com intencionalidade e garantia de aprendizagem para todos. 

É necessário que o professor tenha amplo conhecimento do contexto social e político que envolve o ensino dentro e fora da sala de aula. Ele deve olhar para a realidade em que vivem os alunos, quem são essas crianças e adolescentes, e o que eles sabem e trazem consigo para uma aula.

Também é preciso que o educador seja capaz de fazer leitura de mundo com seus alunos.  Então, por exemplo, quando cai uma barragem, como aconteceu em Minas Gerais, que ele consiga usar os conhecimentos das áreas específicas para abordar esse fenômeno.

Mas isso só será possível com formação teórica sólida e com a prática durante os os estágios supervisionados, projetos de pesquisa, de relação conjunta com as escolas, sobretudo as públicas.

CR: O que os professores precisam ser capazes de ajudar a desenvolver nos estudantes para prepará-los para os desafios atuais e futuros deste mundo em constante transformação?

SGP: Precisamos de estudantes que saibam ler e escrever, mas também consigam ler o mundo e sua complexidade. Que consigam ir às raízes do conhecimento, e entendam por que isso foi formulado, que o conhecimento não é absoluto, que já mudou muito, e deve continuar avançando.

Precisamos de estudantes que questionem a fonte das informações, que as relacionem com interesses outros, do autoritarismo, da desigualdade, que se insira na sociedade em que está, que tenha uma participação proativa, e aponte possibilidades de mudança. E que ele não seja um mero repetidor de coisas, mas aponte caminhos que ajudem a melhorar a humanidade e que isso inclua a todos. 

CR: Em que medida a proposta de formação de professores atual alcança os objetivos de capacitar educadores-pesquisadores que, por sua vez, vão preparar cidadãos ativos e críticos?

SGP: Ao invés de aprimorar a política de formação de professores de 2015, que tem alguns problemas, porém foi o melhor que tivemos até aqui, essa proposta descarta diretrizes e recria outras com ares de inovação, mas que na verdade é um retrocesso. 

Ela retorna à concepção de educação de 2002, no qual a docência era reduzida a um conjunto de competências técnicas. Essa proposição atual compreende o professor como um técnico-prático executor de scripts produzidos por empresários financistas do ensino. 

A proposta desconsidera a formação teórica, que é a base para atuação prática. Também é ausente o movimento de produzir e rever teorias por meio de pesquisas. Isso se contrapõe ao que historicamente construímos no Brasil, que é a concepção de que o professor é um intelectual crítico-reflexivo e pesquisador de sua prática.

Parte do problema está no fato de que a proposta tem uma única fonte de referência, que é Lee Schumann. Esse autor tem contribuições muito importantes, mas ele é um estadunidense de 1986, situado em outro momento histórico, e superado por essa mesma razão. De lá para cá, vários autores em diferentes países, inclusive no Brasil, reviram essa contribuição e tivemos um desenvolvimento crítico sobre essas proposições, que são muito tecnicistas.

CR: Como o cenário político e educacional brasileiro influencia essa proposta de formação docente?

SGP: Embora o texto diga que há uma preocupação com a maioria dos problemas em torno do exercício docente e da valorização profissional, como condição de trabalho e salário, na realidade a intencionalidade dessa proposta fica prejudicada, porque seu grupo elaborador é alinhado às políticas mais amplas em curso no Brasil de desqualificação da carreira

Esse grupo é composto por empresas globalizadas que vem transformando o direito à educação em mercadoria, e se interessa pelo acúmulo do capital para interesses de dominantes, e nem sombra de distribuição. Elas adentraram o espaço público de formação de professores com a benesse do MEC e do governo, que vem privatizando o estado brasileiro e a educação.

E são esses grupos que formam a maioria dos nossos professores hoje, em cursos de licenciatura precarizados e à distância, porque muitos dos professores dos cursos não têm formação pedagógica e nem na área específica. E na graduação, hoje, há pouco espaço para pesquisa, projetos de extensão, e relação com as escolas da rede. E tudo isso vem acompanhado de vários ataques que o Ministério da Educação tem feito às universidades, sobretudo às áreas chamadas de humanas.

Também pesam as políticas que estimulam que o professor seja um horista, o que prejudica sua capacidade de desenvolver um trabalho conjunto com outros pares e com aquele contexto. Além disso, passa a ser um prestador de serviço, não tem um contrato com direitos, fruto dessa revisão da CLT. 

Fica difícil compreender que a concepção dessa proposta seja outra, que não a de promover um retrocesso a um exercício da docência instrumental e neo tecnicista.

+: Base docente: os princípios para formação de professores 

A formação de professores para o contexto da escola brasileira

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