publicado dia 05/09/2018
Entrevista com Helena Singer: inovação como contraponto à retirada de direitos sociais
Reportagem: Da Redação
publicado dia 05/09/2018
Reportagem: Da Redação
por Thaís Iervolino, do Movimento de Inovação na Educação
“Inovação é aquilo que as pessoas e comunidades criam com base em uma pesquisa, em conhecimento, com metodologia clara da realidade em que vivem para enfrentar os desafios sociais que são vividos naquele seu contexto”. Essa é a definição de Helena Singer ao tratar da inovação.
Sua fala reflete os conceitos, metodologias e práticas que centenas de escolas e organizações educativas constroem em seu cotidiano para qualificar a educação brasileira, combater as desigualdades e garantir a aprendizagem de crianças, adolescentes, jovens e adultos do país.
Vice-presidente para a Juventude da Ashoka América Latina, Helena Singer é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Ensino e Diversidade da Universidade Estadual de Campinas (LEPED-Unicamp). Em 2015, quando foi assessora especial do Ministério da Educação (MEC) , era uma das responsáveis pela área de inovação que mapeou 178 instituições educativas ligadas ao tema.
Hoje ela integra o grupo de articulação do Movimento de Inovação na Educação, rede de escolas, profissionais, ativistas e iniciativas sociais que atuam na transformação da educação em seus diversos campos, sempre a partir da perspectiva da inovação.
Durante a entrevista, Helena traça uma linha do tempo sobre a inovação na educação brasileira, quais são seus pilares, o papel de cada um para transformar a educação e a importância da inovação para a garantia de direitos.
Quando se fala sobre o conceito de inovação, muitas vezes se imagina algo subjetivo e até mesmo etéreo, difícil de ser colocado na prática. Para você, o que é inovação?
Helena Singer – A inovação, na área de negócios, é a última tecnologia, a tecnologia mais recente inventada pelo setor industrial, pela área tecnológica. Há todo um estímulo à inovação que, na área de negócios é a promoção ao desenvolvimento tecnológico e representa a mais avançada invenção tecnológica.
Na área social, a inovação é algo muito diferente disso. Inovação é aquilo que as pessoas, comunidades criam com base em uma pesquisa, em conhecimento, com metodologia clara da realidade em que vivem para enfrentar os desafios sociais que são vividos naquele seu contexto.
Os grandes desafios sociais hoje são a degradação socioambiental, a desigualdade socioeconômica e a fragilidade da democracia. Então, a inovação no campo social são as criações, as invenções dessas comunidades para enfrentar esses três desafios.
Os grandes desafios sociais hoje são a degradação socioambiental, a desigualdade socioeconômica e a fragilidade da democracia.
No mundo da educação, a gente tem a área de negócios e tem a educação como um direito, que está no campo do Social. Então, todo negócio em cima da educação vai tentar vender a inovação como a última mercadoria disponível no mercado.
Contudo, a inovação que parte do entendimento que a educação é um direito compreende que são exatamente as escolas, as organizações educativas que criam metodologias e ações para enfrentar os desafios de seu dia a dia e isso é inovação.
Como o principal desafio no campo da educação é garantir a aprendizagem de todos os estudantes, os desafios sociais que eu falei influenciam diretamente na capacidade de uma organização garantir a aprendizagem de todos.
Assim, ao olhar para esses desafios, a inovação da educação passa a ter que desenvolver diversas tecnologias sociais, diversas estratégias, dispositivos e metodologias para garantir que todos aprendam.
Isso que caracteriza a inovação social, quando uma escola, uma organização educativa inventa alguma coisa, envolvendo toda a comunidade para garantir que todos aprendam.
Quais são os pilares da inovação na educação?
Helena Singer – O primeiro pilar é a construção do coletivo que vai criar essa inovação. O coletivo pode ser de professores que trabalham na escola, de educadores de uma organização, de professores e estudantes de um determinado grupo dentro da instituição.
O segundo pilar é a pesquisa. Este novo será baseado em pesquisa sobre o próprio contexto, sobre o coletivo da comunidade onde o grupo está. Por exemplo, se a gente tem um grupo de estudantes de uma escola que definiu qual é a questão que ele quer enfrentar – uma questão de qualquer natureza, como estudar os astros, sem necessariamente estar ligado a um problema social -, o grupo faz isso a partir de uma vontade coletiva, pesquisa e cria as condições para que o grupo possa aprender aquilo que tinha definido que queria estudar previamente.
Outro exemplo é a inovação de uma instituição que quer fazer uma mudança no contexto social em que ela se encontra. Partindo disso, ela vai pesquisar o contexto social, vai descobrir uma questão que ela quer enfrentar e que esteja afetando os alunos. Pode ser, por exemplo, a questão das drogas disponíveis naquele contexto, o consumo abusivo ou a criminalidade envolvida.
Como a instituição vai se organizar para enfrentar essa questão? Tem que ter pesquisa, envolvimento coletivo. E, no final, importa não só o sucesso em relação ao resultado do projeto que se cria, mas também o fato de que os envolvidos tenham aprendido aquilo que se esperava que eles aprendessem com o projeto.
Qual é o papel de cada um na inovação? Do gestor, do educador, da comunidade?
Helena Singer – Pensando em um caminho, tudo começa com o coletivo que se cria. Qualquer mudança, da menor à maior revolução que a humanidade já presenciou, começa com um grupo de pessoas, uma equipe que sonha e projeta junto alguma coisa. Esse é o primeiro passo.
No caso da escola, o passo fundamental é o da equipe de funcionários, professores e gestores se entender como uma equipe daquela instituição, reconhecer os colegas como seus colegas de equipe e projetarem juntos a escola que eles sonham na vida.
A partir da constituição dessa equipe, desse compromisso coletivo com essa escola, é preciso incluir os próximos no projeto, que são os estudantes. A escola só existe por causa dos estudantes.
Uma vez que a equipe se reconhece como uma equipe que quer uma escola [de qualidade], a equipe tem que incluir os estudantes nesse sonho para pensarem “que escola é essa? o que a gente vai fazer este ano? O que a gente quer impactar neste lugar, na vida de vocês?”
Aí entra a comunidade mais ampla, que é a comunidade na qual a escola está inserida, que inclui as famílias dos estudantes, os vizinhos, as associações de moradores e todo o contexto. Esse é um projeto que vai crescendo em círculos, abrangendo cada vez um grupo maior.
Em relação ao gestor da política pública, [sua função] é reconhecer o papel de determinada iniciativa para inspirar as outras iniciativas que estão sob sua gestão. Estamos falando de um secretário municipal de educação se estamos falando de escolas municipais de educação.
Uma secretaria que tem a sorte de ter uma escola municipal em que a equipe se encarregou de criar um projeto coletivo que envolveu a comunidade, as famílias e está construindo a escola que todos sonham tem uma potência enorme, que não é somente para inspirar, contar história e ver os outros fazerem igual. Mas essa secretaria realmente pode criar um projeto para que esta instituição possa ser um núcleo de inovação que envolva toda a rede, para que outras escolas, outros profissionais possam passar estágios lá, para que as tecnologias e metodologias criadas nessa escola possam ser debatidas, criticadas, enfim, e que isso possa ser avaliado em termos do que deu certo e do que não deu.
Em termos da gestão pública, às vezes o secretário vai buscar um exemplo da Finlândia ou da Coreia e tem um exemplo em seu território com uma condição, uma potência muito maior para ser aproveitada na rede.
Há especificidades da escola e da organização educativa em relação à inovação? Quais são?
Helena Singer – Um dos principais problemas do debate da educação, das políticas públicas e do financiamento é que se reduz a educação à escolarização e a escolarização é uma parte muito pequena da educação.
A educação envolve outras instituições educativas além da escola, começando pela própria família. Para além disso, as instituições não escolares sempre desempenharam um papel fundamental na educação das crianças, dos jovens.
Existem instituições de diversas naturezas, desde as ligadas às instituições de ordem religiosa, os escoteiros – que são a maior organização de jovens do mundo – as organizações que foram criadas no contexto das políticas da Assistência Social, para ajudar as crianças e adolescentes que vivem em um contexto de vulnerabilidade social, as organizações da educação popular. São milhares e milhares de organizações educativas, que fazem trabalhos relevantes, que tem profissionais envolvidos, metodologias consolidadas – muitas vezes de sucesso – e que não influenciam a educação formal. Elas são muito pouco visibilizadas, são muito pouco tematizadas porque todo o financiamento da educação vai para a educação formal, para a escolarização.
Essas organizações recebem muito pouco recursos públicos, quando recebem, são recursos da área de Cultura, da área de Meio Ambiente, da área de Assistência Social, nunca da Educação. Essa compartimentação, que nas políticas públicas se dá no “ministério que só cuida disso”, no “ministério que só cuida daquilo”, é reproduzida nas secretarias e a criança, que de manhã está na escola, de tarde está em um projeto social ou nos escoteiros, vive em seu cotidiano várias experiências que não se refletem em nenhum diálogo, nem real nem teórico, em relação à formulação das políticas públicas para essa criança.
O que tem mudado na inovação da educação ao longo dos tempos, desde o início da sua trajetória até hoje?
Helena Singer – A minha carreira na Educação começou no início dos anos 1990, no contexto de um Brasil antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que foi um marco, que mudou tudo.
Naquela época, um ponto mais avançado do debate da educação e que até então pouca gente falava disso, era a gestão da escola. A proposta era a de ter maior participação dos estudantes, dos professores e dos funcionários nas decisões da escola.
Estávamos em um contexto pós promulgação da Constituição, da reconquista da ordem democrática e a preocupação era pensar em como isso apareceria na organização da escola. Muito timidamente também aparecia a preocupação com relação ao currículo escolar, que deveria ser construído de uma forma em que o estudante pudesse ter mais autonomia para dizer o que ele quer estudar e organizar seus estudos de uma maneira que fizesse mais sentido a ele, mas isso ainda era muito incipiente no Brasil.
Essa questão da democratização não só da gestão mas do conhecimento logo passou a ser encampada em um tema que ganhou muito mais força que é a questão da inclusão escolar.
A partir do momento em que o movimento das pessoas com deficiência e das famílias de pessoas com deficiência passou a reivindicar que as pessoas com deficiência não passassem mais por escolas especiais, mas que fossem incluídas nas escolas regulares, isso fez com que obrigatoriamente a escola se transformasse, já que não dá para adaptá-los ao padrão da escola regular. Dessa forma, uma escola inclusiva deve ter outra forma de funcionamento, de organização do espaço, do tempo e do conhecimento. O tema da inclusão escolar foi uma urgência do movimento social que impactou profundamente a educação escolar. Isso foi no início dos anos 2000.
Quase que simultaneamente, começou o movimento de pensar na escola para além de seus muros. Estávamos falando que na escola o espaço tem que ser democrático e inclusivo, mas aí veio a questão: qual é o papel da escola com o seu entorno?
Tanto do ponto de vista de aproveitar as potencialidades educativas – que inclui as instituições educativas não escolares, as instituições culturais, a rua, as oportunidades de educação ambiental, enfim, todas as oportunidades de educação fora da escola – mas também a partir da função de que a escola é um centro de produção de conhecimento e cultura em relação àquele contexto, comunidade, bairro em que está.
Isso, com o advento da educação integral, já no início dos anos 2000, passou a ser tematizado. Algumas políticas públicas passaram a ser formuladas tanto no âmbito federal como no estadual e municipal, que são os responsáveis pela Educação Básica para garantir, ou pelo menos, possibilitar que tudo isso acontecesse.
Estamos em um outro movimento agora, já que a inovação, uma vez conquistada, deixa de ser inovação. Hoje há certa diluição da escola em seu contexto, em seu bairro, que alguns vêm chamando de comunidades de aprendizagem. Na verdade, isso também aparece com o conflito, como por exemplo o papel das novas tecnologias na educação. Hoje aparece como uma ameaça à qualidade na educação, ao trabalho dos professores.
Mas a gente tem que reconhecer que as pessoas estão se educando, aprendendo, se relacionando fora do contexto escolar, em um contexto muito ampliado por causa das novas tecnologias e não dá para a gente fechar os olhos em relação a isso e continuar no velho modelo escolar todos os dias, várias horas por dia, dizer que a pauta é aumentar o número de aulas por escola. É preciso olhar para esse contexto, para essa escola, para essa realidade, para a vida das pessoas, dos estudantes, dos jovens e ver o que está fazendo mais sentido para eles.
Neste momento, eu nem sei formular muito bem o que devemos buscar, mas tenho convicção que a inovação virá com os próprios jovens. A gente tem uma juventude capaz de formular muito claramente o que ela deseja e o rumo que ela quer tomar. O caminho é a gente escutá-los.
A inovação tem que estar atrelada ao combate das desigualdades. Estamos vivenciando um retrocesso em relação à democracia e garantia de direitos. Como inovar nos tempos de hoje?
Helena Singer – Eu me vejo com dificuldades em como enfrentar isso. Muitos movimentos sociais se colocam no lugar da resistência: “não é possível falar da inovação porque temos que segurar o que conquistamos até agora”. Então, o movimento é feito para resistir e garantir que não tenhamos nenhum direito a menos. Eu, obviamente, sou a favor dessa palavra de ordem “não devemos perder nenhum direito”.
Mas se a gente fica muito preso somente a esta pauta, a capacidade de inovar é colocada em xeque. Isso é uma certa armadilha porque a gente vai perdendo os direitos na medida em que vem formulações contrárias a eles e não existe nenhuma outra proposta capaz de fazer frente ao retrocesso.
O que está sendo ameaçado, está sendo ameaçado inclusive porque não está dando conta. Estamos há décadas vivendo a degradação socioambiental, a desigualdade socioeconômica não diminuiu – houve inclusão social, mas a desigualdade não diminuiu – e a democracia está cada vez menos efetiva para garantir a participação igual de todos.
Não dá para a gente fechar os olhos. O que a gente tinha conquistado não foi suficiente e a gente tem que continuar conquistando e criando coisas novas para garantir direitos para todos.
Se a gente se apega ao velho para resistir, a gente perde o debate porque o novo vem dizendo que vai solucionar o problema que não conseguimos resolver e só porque aparece como novo às vezes ganha a adesão das pessoas, das forças políticas. Isso não é inovação, é novidade.
A gente não pode ficar preso no lugar da resistência. Temos que apresentar propostas inovadoras para impedir que os direitos sociais sejam ameaçados e retirados.
Um exemplo é o Ensino Médio. Temos uma proposta que é única e que é a do Governo e temos uma quase que unanimidade de um país contra essa proposta. Qual é a segunda proposta?
O modelo que se tinha e que se tem não é suficiente. O Ensino Médio é muito ruim no Brasil e quase no mundo todo. Ele não dá conta das necessidades dos estudantes e é por isso que se tem uma evasão imensa, quem sobrevive a ele não necessariamente aprendeu muita coisa. Então, qual é a proposta para o Ensino Médio que a gente vai formular para fazer frente a essa proposta do governo?
Ainda com o panorama do retrocesso sociopolítico, há iniciativas em todo o Brasil que buscam qualificar e garantir o direito à educação por meio de práticas e metodologias inovadoras. Como construir e manter essas propostas diante deste cenário?
Helena Singer – Quem está na busca da transformação e da criação de uma nova possibilidade de educação encontra esse contexto que não é animador, mas quando começam esse processo, vão ganhando muito retorno positivo, diferente dessa realidade política mais ampla.
Os primeiros passos são mais difíceis: conquistar a equipe, o grupo inicial que vai começar esse processo e enfrentar as primeiras resistências.
Porém, rapidamente surgem muitos bons resultados: começa a haver um maior engajamento dos estudantes, das famílias, e uma maior solidariedade entre a equipe. Não é o resultado final, mas cotidianamente as pessoas vão vivendo pequenas satisfações que são o combustível para que consigamos enfrentar os maiores desafios da política que a gente vive hoje.