publicado dia 17/01/2023

Educação antirracista: 3 perguntas para Gina Vieira sobre a Lei 10.639

Reportagem:

Quando uma criança negra abre um livro e lê uma autora negra referindo-se a seus cabelos como uma coroa ou quando um jovem aprende que seus antepassados escravizados eram médicos, cientistas e membros da nobreza no continente africano, a exclusão escolar diminui, a autoestima e a aprendizagem melhoram e dá-se início a um processo de valorização da história, cultura e identidade negra. Esse é o objetivo da Lei 10.639, um marco para a educação antirracista que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas brasileiras, e que em 2023 completou 20 anos.

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Fruto da luta do movimento negro, a legislação tem como objetivo promover uma educação antirracista, contribuir para o enfrentamento dessa violência em toda a sociedade e, principalmente, garantir o direito de todas e todos os estudantes negros de conhecerem sua rica história e as outras formas de compreender o mundo e de produzir conhecimentos – passados e atuais.

“Como diz um dos grandes intelectuais negros, existe uma história do povo negro sem o Brasil, mas não existe história do Brasil sem o povo negro”, relembrou Gina Vieira, formadora de professores da educação básica do Distrito Federal e membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a especialista avaliou a importância e a implementação da Lei 10.639 nas últimas duas décadas e destacou a necessidade de formar professores e criar novos materiais didáticos para cumprir a lei. Confira a conversa na íntegra a seguir:

Centro de Referências em Educação Integral: Nas redes e escolas em que a Lei nº. 10.639 foi implementada efetivamente, que transformações você viu ocorrer para estudantes, professores e a comunidade em geral? 

Gina Vieira: A lei 10.639 é parte de um movimento histórico importante, é uma conquista do movimento negro e sua atuação incansável. O que fez com que ela ganhasse ainda mais força é que, concomitante à sua aprovação, tivemos a aprovação das políticas afirmativas, a chegada de pessoas negras à universidade de forma mais contundente. 

Ao longo desses anos, percebo que a primeira grande conquista foi reafirmar o direito de estudantes negros terem acesso à sua história e de todos nós termos acesso a outras epistemologias e cosmopercepções do mundo. 

“Basta lembrar que a lei vai completar 20 anos em um país com mais de 500 anos, ou seja, há apenas duas décadas o país reconhece a importância de ter um trabalho sistemático e intencional de educação antirracista”, destaca Gina Vieira

Até a aprovação dessa lei, não se falava com consistência sobre educação antirracista e essa lei é um marco histórico e legal para ser muito celebrado, porque foi a partir dela que pudemos apontar quanto a escola ainda é profundamente racista, quanto nossos materiais didáticos, metodologias, epistemologias, currículos, ainda estão distantes de superar a lógica branca e eurocentrada. Basta lembrar que a lei vai completar 20 anos em um país com mais de 500 anos, ou seja, há apenas duas décadas o país reconhece a importância de ter um trabalho sistemático e intencional de educação antirracista. 

Quando se faz esse trabalho com intencionalidade e seriedade, há uma tomada de consciência. Todos nós fomos formados dentro de uma cultura racista, então o racismo foi implantado no nosso inconsciente pelas práticas, discurso, representações sociais que estão no imaginário coletivo e no inconsciente de cada um de nós. É a imagem de controle de que fala a Patricia Hill Collins, dessa repetição da imagem da mulher negra e mulher de sujeição. 

As pessoas também passam a tomar consciência de que o Brasil é um país negro. Como diz Lélia Gonzalez, aqui se pratica racismo por denegação, isto é, o Brasil se compreende como um país branco de origem europeia, com algumas contribuições pontuais do povo negro. 

Quando promovemos a educação antirracista, as pessoas passam a compreender que não se trata de dizer que os negros deram contribuições à cultura brasileira. Se trata de dizer que a cultura brasileira é negra. Como diz um dos grandes intelectuais negros, existe uma história do povo negro sem o Brasil, mas não existe história do Brasil sem o povo negro.

CR: Como você avalia a implementação da lei no Brasil nos últimos 20 anos e quais são os principais entraves para sua efetivação?

GV: Política pública não é produto, é processo. Como diz [o poeta Carlos] Drummond, “as flores não nascem por força da lei”, então é preciso continuidade de políticas públicas que garantam que a lei possa ser cumprida. 

Faltou continuidade, organização, sistematização e atuação mais incisiva e organizada da gestão central, em especial nos últimos anos, em que testemunhamos uma terrível descontinuidade de políticas públicas voltada para a educação e os direitos humanos. 

Depois que a lei 10.639 foi aprovada, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e as Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Esses documentos são decisivos e norteadores, mas não dão conta de tudo. 

“Para aprender, a criança e o jovem negro precisa se enxergar nos materiais didáticos e fora do lugar do estereótipo”, afirma a educadora

Todos nós, professores, fomos formados a partir de um currículo eurocêntrico. Não tivemos a oportunidade de estudar pesquisadores negros, porque sofremos um genocídio epistêmico. O saber dos intelectuais negros, do continente africano e da cultura afrobrasileira esteve soterrado e excluído dos espaços de formação, tanto na universidade quanto na educação básica. 

Então uma política de formação que alcance todos os professores tem que ser feita processualmente, com intencionalidade, e liderada por pessoas profundamente qualificadas. 

As pessoas imaginam que é possível promover educação antirracista no improviso e na boa vontade, que os professores podem buscar sua própria formação. Mas estamos falando de direitos que precisam ser garantidos, o que demanda investimento financeiro nessas políticas para formação continuada em educação antirracista para professores(as), gestores(as) e coordenadores(as) pedagógicos, constituindo uma comunidades de aprendizagem, como diz bell hooks, de forma integrada, colaborativa. 

Tem também a questão da formação inicial do professor. As ementas das graduações têm reservado disciplinas para acessar o pensamento negro, decolonial, para que se conheça outras pedagogias, como diz Luiz Rufino na “Pedagogia das Encruzilhadas”? 

Além disso, tampouco observamos um esforço genuíno do Ministério da Educação (MEC) para atualizar os nossos materiais didáticos e currículos. Como diz o grande Miguel Arroyo, como nossos estudantes vão aprender em materiais didáticos em que suas imagens são espelhadas como um fardo para a nação, um símbolo do atraso e da subalternidade, associado ao sofrimento e à escravização?

O Projeto Mulheres Inspiradoras, por exemplo, em que privilegiamos a leitura de autoras negras ao longo do ano, com intencionalidade, transversalizando o tema, impactou muito a turma. 

Levei um livro da Cristiane Sobral em que ela fala sobre a estética negra e compara o cabelo de uma mulher negra à coroa de uma rainha que nasce coroada, a uma árvore frondosa, e percebi a mudança na sala de aula. Para aprender, a criança e o jovem negro precisa se enxergar nos materiais didáticos e fora do lugar do estereótipo.

CR: Implementar a Lei 10.639 faz parte de uma proposta maior, de promover uma educação antirracista nas escolas em todas as suas dimensões. O que isso significa na prática? 

GV: Enfrentar o racismo estrutural demanda mudanças estruturais no pensamento da gestão central e intermediária, local, chegando a cada unidade escolar e a cada professor. 

Depois, é preciso refletir sobre a quantas andam as relações dentro da escola, pensar em políticas de acesso e permanência de estudantes negros, porque se estamos falando de um país que produziu desigualdades a partir do racismo estrutural, falamos de jovens que vêm de 16 gerações de não acesso à escolaridade. 

Para dar conta de manter um jovem negro na escola, vai precisar de uma rede de apoio. Não dá para falar do cumprimento da lei 10.639, que diz sobre garantir o conhecimento da história e cultura africana e afro-brasileira, sem falar também de políticas públicas de acesso e permanência na escola e de êxito escolar, de garantia de aprendizagem.

É preciso também enfrentar o mito da democracia racial que persiste entre os professores. É aquela crença de que somos todos iguais, que o país sempre tratou todo mundo da mesma maneira, e que apontar racismo é vitimismo. Nas muitas formações que dei, quando falava sobre a importância de abordar a história e a cultura negra, era comum dizerem que isso vai dividir os alunos e causar problemas. 

As escolas, as redes de ensino, não vão implementar a educação antirracista, tal qual a lei deseja que se faça, se a escola tiver coragem de se reconhecer como parte do problema. Admitem que há racismo na sociedade, mas não na escola, só que ela não está à parte da sociedade, ela é um reflexo do que acontece na sociedade.

“Quando falamos de levar o pensamento negro para a escola, também falamos de levar outras concepções de organização social, outras epistemologias. A lógica branca, europeia, ocidental e colonial, representa a sociedade a partir de um lugar que valoriza a competição, a expropriação e a exploração do outro. Precisamos falar de outras formas de organização social”, diz Gina Vieira

Assim como a escola precisa confrontar seu próprio preconceito, também precisa chamar professores, orientadores educacionais, gestores e todos os profissionais de apoio ao magistério, a se pensarem dentro dessa estrutura, porque as pessoas falam do racismo como algo externo a elas. Eu só vou promover uma educação genuinamente antirracista se eu tiver a coragem de confrontar o racismo que me habita. Mesmo uma pessoa negra pode reproduzir racismo porque foi educada dentro de uma cultura profundamente racista. Pessoas brancas precisam ter a coragem de admitir que o racismo habita seu inconsciente. Associam ser racista com ser alguém mau e perverso. É ruim e péssimo, mas se você nega e diz que está no outro, você nunca se desconstrói. Qualquer trabalho vai se mostrar inconsistente se não me vejo como parte do problema. 

Desde que a lei foi aprovada, também acontece um fenômeno que eu chamo de pedagogia de eventos, também apoiada no pensamento do professor Francisco Thiago Silva e Jurjo Torres Santomé, que são curriculistas, para dizer que no afã de cumprir a lei e por não ter repertório em função dessas lacunas das políticas públicas, o que se faz é um arremedo de educação antirracista, que acaba por reforçar estereótipos. 

Escolhem três ou quatro manifestações culturais para apresentar para os alunos – feijoada, capoeira, samba – e todo ano repete essas mesmas manifestações em um mesmo mês. Assim, a escola reafirma os estereótipos racistas que dizem que somos um país branco e o povo negro deu essa pequena contribuição e que ele deve ser representado de maneira folclorizada.

O livro “Alienígenas na sala de aula: Uma introdução aos estudos culturais em educação”, organizado por Tomaz Tadeu da Silva, argumenta que quando a escola vai abordar a história e a cultura africana e afro-brasileira, o faz de maneira aligeirada, empobrecida, superficial e de maneira que reforça os estereótipos. Já ouvi depoimentos de jovens negros que se deparam com esse trabalho, não se sentem valorizados. 

Embora a data de 20 de novembro deva ser celebrada, a educação antirracista se faz todo dia. A escola precisa estar muito atenta para não promover um monte de eventos descolados do currículo.

A implementação da Lei 10.639 depende de outras políticas, como a Lei de Cotas, que ampliou o acesso de pessoas negras ao Ensino Superior

Crédito: Marcello Casal/Agência Brasil

Quando falamos de levar o pensamento negro para a escola, também falamos de levar outras concepções de organização social, outras epistemologias. A lógica branca, europeia, ocidental e colonial, representa a sociedade a partir de um lugar que valoriza a competição, a expropriação e a exploração do outro. Precisamos falar de outras formas de organização social. 

Povos tradicionais, negros, o povo africano tinha outra forma de se organizar, outra mentalidade. Quando fala de ensinar cultura africana e afro-brasileira, está falando de dar oportunidade de compreender que existem outras possibilidades para a existência da sociedade. Como vamos formar as novas gerações para vislumbrar outro mundo se só nutrimos esses jovens com uma mesma cultura? 

Se o currículo valoriza os saberes das classes dominantes e elas são brancas, a gente precisa falar sobre como o currículo muitas vezes trabalha pela perpetuação dessas desigualdades que tem como principal origem o racismo estrutural.

Já ouviu falar em racismo ambiental? Saiba mais sobre esse conceito!

Quando pensamos a relação dos povos negros e indígenas com a natureza, é uma relação completamente diferente, em que as pessoas não se compreendem fora da natureza, mas como parte dela. A lógica ocidental branca colonial criou essa relação destrutiva com o planeta. Trazer a cosmopercepção africana do que é a natureza pode provocar as novas gerações a pensar com mais seriedade as questões climáticas, porque temos que falar do racismo que se traduz na forma como pensamos a geografia do mundo e a exploração dos recursos naturais.

Promover a educação antirracista significa trabalhar significativamente para promover mudanças estruturais na nossa sociedade, e isso é mudança de mentalidade, principalmente.

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