“Que planta é essa, professora?” Escola pública promove etnobotânica e decolonialidade no ensino das Ciências

Publicado dia 11/11/2022

logo premio territoriosNo Centro Educa Mais Professor Ribamar Torres, em Pastos Bons, interior do Maranhão, que atende 300 estudantes de Ensino Médio em tempo integral, o que começou como uma aula eletiva semestral de meio ambiente e saúde, tornou-se um projeto que já dura quase dois anos e une os conteúdos curriculares a atividades práticas e em campo, em contato com os saberes do território e de seus sujeitos. Isso só foi possível graças ao faro aguçado de uma professora em perseguir os interesses de seus estudantes.

Leia + Caminhos para a BNCC de Ciências Naturais: por um ensino diverso e contextualizado

A experiência, que foi uma das 10 vencedoras da 6ª edição do Prêmio Territórios, uma iniciativa do Instituto Tomie Ohtake, realizada em parceria técnica com a Cidade Escola Aprendiz e o Centro de Referências em Educação Integral, teve início com a eletiva “Olhos nos Olhos”.

Seu objetivo era realizar atividades práticas para mapear e estudar os vários olhos d’água e nascentes que existem na região e são fundamentais para a história do território, já que permitiam a criação de gado e hoje abastecem a cidade.

A professora Rosa Maria Duarte Veloso, que leciona Biologia, junto aos professores de Geografia e Química, começaram o trabalho com a turma de 2º ano. Em excursões pela mata, mapeavam os olhos d’água e nascentes, identificavam suas condições ambientais e conversavam com a comunidade local para saber da importância e da história dessas fontes de água. Organizaram, ainda, um mutirão para limpeza destes pontos em que havia lixo acumulado.

imagem

Os estudantes começaram a se interessar pelas plantas que encontravam no caminho

Crédito: Rosa Maria Duarte Veloso

Nas trilhas, os estudantes começaram a se interessar pela mata ciliar que os rodeava. “Que planta é essa, professora?”, perguntavam o tempo todo. A educadora, antenada aos interesses da turma e às possibilidades pedagógicas que podem surgir disso, seguiu o desejo dos adolescentes.

Combatendo a cegueira botânica na prática 

A turma passou, então, a coletar e catalogar as plantas que encontravam no Cerrado. Faziam fotos, anotações e pediam ajuda pela internet a botânicos para identificar as espécies que desconheciam. Ao final de seis meses de trabalho, catalogaram 99 plantas – 20 delas eram exóticas, outro conceito que estudaram – e 11 olhos d’água, que permitiram estudos como o uso da água, cálculos de volume de água jorrado por hora e o mapeamento geográfico de suas localizações e dos bairros que abastecem.

“Quando a eletiva acabou, os estudantes pediram para continuarmos os estudos, porque estavam gostando muito. As notas deles aumentaram depois desse projeto, então não tinha por que parar”, conta a professora Rosa.

Para dar prosseguimento ao projeto, a turma se interessou por continuar a pesquisar sobre as plantas que existiam ao redor e eles nunca haviam notado. “Isso se chama cegueira botânica, então fui estudar esse conceito com eles, a questão do racismo ambiental, lemos Ailton Krenak e começamos a produzir vídeos para o TikTok (@cienvivencia) para compartilhar com mais pessoas esses conhecimentos”, relata Rosa.

@cienvivencia Mucuna sloanei pode ser encontrada desde a Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, especialmente em florestas ciliares ou de galeria. É popularmente conhecida como olho de boi, olho de cavalo, feijão do mar, feijão hambúrguer, além de ser chamada por tribos e grupos étnicos de ukpo, karasuu e yerepe . As sementes dessa espécie apresentam alto teor de polissacarídeos na parede celular. Em países africanos ela é utilizada como espessante de alimentos nas comunidades tradicionais. #preserveocerradobrasileiro #fy #natureza ♬ som original – CIENVIVENCIA

Enquanto estudavam as plantas e seus aspectos botânicos, a turma descobriu também seus usos culturais e sociais e ouviram raizeiros, benzedeiras e artesãos da comunidade para aprender com eles.

Assim, os vídeos mesclam saberes das propriedades botânicas aos seus usos em brincadeiras infantis, na indústria e nas fazendas, como parte da alimentação, da medicina popular e de práticas religiosas. “Foi muito legal porque professores, outras escolas e botânicos começaram a usar esses vídeos”, comenta Rosa.

Entre todos esses temas, um chamou a atenção em especial dos adolescentes: as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs). A partir de então, começaram a coletar plantas nativas do cerrado para produzir alimentos com as merendeiras na escola e nas casas de estudantes e professores. Também fizeram uma degustação na escola para toda a comunidade de suas produções e agora estão testando várias receitas para escrever um livro de PANCs do Cerrado.

Algumas das comidas feitas pelos estudantes a partir de PANCs do Cerrado

Crédito: Rosa Maria Duarte Veloso

Etnomatemática? Saiba mais sobre esse conceito no nosso glossário!

“Chamamos esse projeto de Fruturos do Cerrado Maranhense e todo mundo se envolveu. As famílias vão a campo junto com a gente e avisam quando veem uma planta para a gente coletar, ficam emocionados de comer algo que não comiam desde a infância. Além disso, estamos trabalhando economia solidária e segurança alimentar”, diz a professora de Biologia.

Ao longo do processo, estudaram a etnomatemática, porque encontraram no meio do caminho, em diálogo com as pessoas mais velhas da comunidade, outras formas de medidas. 

“Todo esse trabalho é sobre valorizar e preservar a cultura e o bioma. É ter os estudantes negros, quilombolas, da zona rual, e suas famílias, se vendo nesse espaço de potência, de ciência, aprendendo e ensinando. É lembrar que o Cerrado é o berço da água e que se não tem planta, não tem água”, sintetiza Rosa.

Práticas pedagógicas decoloniais no ensino da Ciência 

Agora, as faltas dos estudantes diminuíram e o desempenho escolar melhorou. Estudantes que pela primeira vez fora da sala de aula causaram algazarra, tornaram-se figuras de referências para os demais. Os adolescentes e a professora são convidados para debates, eventos científicos e selecionados para projetos científicos, bolsas de estudo e prêmios. 

Outras escolas os consultam para saber como realizar o trabalho e os demais professores da escola abraçaram a causa e vêm estudando essas questões em suas áreas do conhecimento.

“Nunca imaginamos que iríamos tão longe. Somos uma escola pequena, com 17 professores, no interior, sem infraestrutura, não temos lupas e microscópios”, afirma a professora, que também contar ter financiado boa parte do trabalho sozinha, como a compra de demais ingredientes para fazer as receitas e até roupas e sapatos adequados para que os estudantes pudessem ir a campo com segurança.

“Dá para ver no encantamento dos estudantes e na aproximação que tivemos com a comunidade que essa forma de trazer os conteúdos curriculares faz sentido”, diz a professora Rosa.

“O que temos são práticas pedagógicas decoloniais de ensino, porque estamos trabalhando para além da teoria, na prática, fora da sala de aula, junto com a comunidade, com os conhecimentos científicos e populares, valorizando quem sabe muito, ainda que não tenha terminado o Ensino Fundamental. Dá para ver no encantamento dos estudantes e na aproximação que tivemos com a comunidade que essa forma de trazer os conteúdos curriculares faz sentido”, diz Rosa.

Para Natame Diniz, coordenadora da escola Tomie Ohtake e selecionadora do Prêmio Territórios, essa é justamente a potência dessa experiência: articular os saberes do território e de seus sujeitos a um currículo vivo.

“Na inscrição do projeto, a Rosa usou uma expressão muito bonita que sintetiza esse trabalho: é uma alfabetização de futuros. Não dá para pensar o nosso tempo, a nossa educação, sem olhar para a questão ambiental, sem o respeito ao outro, que eles exercem por meio de uma escuta atenta e sensível aos saberes da comunidade e seus sujeitos”, diz Natame. 

Confira um poema escrito por Aline Sandes Santos, estudante da turma de Rosa: 

Cienvivência

É tão divertido para começar,

Nossas aulas de biologia

Começaram a melhorar

Graças a Rosa Maria.

 

Não dá nem para reclamar

Aulas ao ar livre

São as melhores vou confessar

A conexão é firme.

 

Aprendemos sobre plantas

De uma fonte direta

A natureza para nós canta

Sua música predileta

 

A saúde de seu solo

A preservação do meio ambiente

A importância de seus polos,

De seus rios e nascentes.

 

Começando na eletiva

Chamada: olhos nos olhos

Nosso ponto de partida

Iniciamos a pesquisa.

 

Fomos no olho d’água de São Bento

Para filmar a natureza

Utilizando seus elementos

E capturando sua beleza

 

Como objetivo temos

Popularizar o saber ambiental

Para que compreendam 

Que as frutas regionais fazem parte da identidade local 

 

A etnobotânica e etnomatemática

São tão interessantes

De forma multidisciplinar 

Ampliamos nosso olhar

 

Conhecendo o território 

Pudemos nos Reconectar 

Comendo o bom alimento

Os sabores  ativar

 

Respeitando a biodiversidade que é o nosso lar

Nos conformes e com limites

Matamos nossa curiosidade

Respirando ar livre foi nosso manjá

 

Um assunto quero destacar:

Que as frutas de cá,cagaita,Sapucaia, Jatobá, mutamba

Não são comidas de pobre

Deixem de desdenhar

 

Acreditar que quem come

É estranho, gente sem condição

Gente que tá passando fome

É uma grande desinformação 

 

Uma calúnia das grandes

Isso posso afirmar

Maior fonte de nutrição

Que essas frutas não há.

 

Procure pesquisar e estudar

Para não falar bobeira

Gente mal informada

Só fala besteira.

 

Só para finalizar essa poesia

Quero dá os parabéns

A Beatriz Sá, Claudevanio, Roberto Carlos,

Também a Izabel, Aline Sandes e Rosa Maria.

 

Alunos da turma 200

2° ano do ensino médio

Galerinha animada

Que é o contrário de tédio.

 

Um desafio foi lançado

O agarramos com entusiasmo

Se não fosse o esforço de todos

Aqui não teríamos chegado

 

Obrigada por ler este escrito

Deve realmente ter gostado

Para quem leu até aqui

Espero tê-lo ajudado.

Conheça as demais experiências vencedoras do Prêmio Territórios: 

Crianças desbravam ruas de São Paulo com projeto Motoca na Praça

Escola de Armação dos Búzios (RJ) resgata a cultura quilombola do território

Para além dos muros da escola, EMEF Professor Waldir Garcia transforma bairro em território educativo

Com solidariedade educativa, CIEJA Clóvis Caitano reforça elos e promove reinserção profissional

Escola rural em assentamento luta para garantir direito à educação de suas crianças

Em Joinville (SC), estudantes resgatam as trajetórias de mulheres pretas na História

Cine EducAlimentação propõe enfrentamento à insegurança alimentar no Colégio Estadual Mário do Carmo Lima

Resgate de identidade cultural caiçara transforma vila de pescadores em território educativo em SC

Professora promove o letramento a partir da etnometeorologia em Paraty (RJ)

Escola

Escola de Armação dos Búzios (RJ) resgata a cultura quilombola do território

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.