Em Joinville (SC), estudantes resgatam as trajetórias de mulheres pretas na História
Publicado dia 04/11/2022
Publicado dia 04/11/2022
Em uma aula em que a turma do 2° ano do Ensino Médio da EE Dr. Jorge Lacerda, em Joinville (SC), estudava os vários homens líderes da Revolução Francesa, uma estudante ergueu a mão e perguntou: “Professora, onde estão as mulheres nessa história?”. Angela Maria Vieira, professora de História que conduzia a aula, gostou da provocação e foi além: “Onde estão as mulheres pretas na História?”.
Os questionamentos aguçaram a curiosidade da turma e deram origem a uma série de pesquisas e intervenções artísticas.
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A pergunta da educadora se tornou o título do projeto realizado ao longo de 2021 e que está entre os dez vencedores da 6ª edição do Prêmio Territórios, uma iniciativa do Instituto Tomie Ohtake, realizada em parceria técnica com a Cidade Escola Aprendiz e o Centro de Referências em Educação Integral.
“Foi um projeto multidisciplinar, em que pesquisamos as trajetórias de mulheres pretas de todas as áreas. Conhecemos mais sobre a história e os feitos de mulheres como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez, Dandara, Tereza de Benguela, as cientistas Jaqueline Goes e Ester Sabino, que fizeram o sequenciamento genético do coronavírus, o primeiro passo para vacina, e as revolucionárias haitianas”, conta a professora Angela.
Além dessas histórias, a turma também se dedicou a pesquisar as mulheres do território de Joinville, como Ana Lúcia Martins, a primeira vereadora negra, e Alessandra Cristina Bernardino, que é militante antirracista e professora.
“Há em Joinville o mito fundador germânico e as pessoas ficam muito arraigadas a essa narrativa. Pode ter existido esse grupo hegemônico no período da colonização, mas precisamos romper com isso e perceber que hoje a cidade é multiétnica. Recebemos muitos haitianos, venezuelanos e pessoas de outros estados brasileiros, que sofrem racismo e preconceitos aqui por causa desse racismo estrutural“, explica Angela.
Para Gina Vieira, formadora de professores da educação básica do Distrito Federal e membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, contar a história sem trazer a participação das mulheres é contar uma história profundamente incompleta.
“A gente fica com uma sensação, como diz Lélia Gonzalez, de que quem fizeram as histórias formam homens ricos e brancos, só porque foram eles que documentaram essa história. Mas isso traz um prejuízo cultural e histórico enorme, porque acabamos por transformar a escola em um dispositivo para reafirmar a subalternidade das mulheres. É Importante para o país, para nossa memória, nossa identidade, trazer riqueza de nossa história e romper com a história única que os homens vem contando”, diz Gina.
A especialista também explica que trazer as diversas trajetórias e papéis das mulheres em nossa sociedade contribui para romper com imagens de controle que, historicamente, retratam as mulheres negras como mãe preta boa, escravas, babás de mulheres brancas e objetos sexuais.
“A Patricia Hill Collins vai dizer que essas imagens de controle funcionam com mais força do que os estereótipos, porque condicionam as pessoas a acharem que são e sempre foram os únicos lugares que as mulheres negras podem ocupar. Daí a importância de mostrar as grandes intelectuais, pesquisadoras, lideranças, cientistas, na resistência à escravização e na construção de soluções para o pós-abolição, por exemplo”, afirma Gina.
Além de fortalecer a autoestima e anunciar outras possibilidades identitárias e de caminhos para as mulheres e crianças negras, todo trabalho antirracista também traz outras alternativas de branquitude.
“As pessoas brancas são subjetivadas dentro da cultura a partir de uma perspectiva que as faz acreditar em uma suposta superioridade em relação às pessoas negras. Vale lembrar que é uma questão estrutural, não individual. Então um trabalho como esse favorece desconstruir o racismo que habita o inconsciente delas”, explica Gina.
Para as pesquisas, a professora Angela recorreu a sites especializados na temática racial, como o Alma Preta e Geledés, livros como “Pequeno Manual Antirracista” e “Quem tem medo do feminismo negro?”, da filósofa Djamila Ribeiro, além de outras indicações dos próprios estudantes.
Ao longo do projeto, a turma produziu textos – compilados em livro inteiramente feito pelos jovens – ilustrações e pinturas para retratar as mulheres estudadas. Ao final, foi organizada exposição e intervenção artística para homenagear essas mulheres.
“A forma como os estudantes se envolveram com as histórias, como contaram essas trajetórias de maneira sensível e potente, a beleza das ilustrações, tudo isso me mostrou quanto eles gostaram do trabalho. E para as minhas estudantes haitianas foi especialmente importante, deu para ver no brilho no olho delas”, relembra Angela.
O trabalho, ancorado na Lei n°. 10.639, que prevê o ensino da cultura e da história africana e afro-brasileira nas escolas, tornou-se parte do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola este ano, a fim de torná-lo permanente, sendo aperfeiçoado e contextualizado a cada ano.
“Em geral, as escolas ainda fazem um trabalho muito incipiente em relação à questão racial, porque não recebem centralidade e ainda se trabalha na lógica de pedagogia de evento, só em 20 de novembro, reduzindo toda a cultura negra à capoeira, feijoada e roda de samba, o que só reforça os estereótipos. Nessa escola, o trabalho aconteceu de maneira transversal ao projeto pedagógico, aos conteúdos, às relações da escola, e isso traz mais força e potência e qualidade pedagógica”, comenta Gina.
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