publicado dia 13/02/2020
Escolas cívico-militares prometem educação integral, mas distanciam-se dessa proposta
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 13/02/2020
Reportagem: Ingrid Matuoka
Em fevereiro, o Ministério da Educação (MEC) divulgou o Regulamento das Escolas Cívico-Militares, que rege como devem funcionar as 54 instituições de ensino contempladas pelo Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM).
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A introdução desse documento afirma que o objetivo dessas escolas é promover a autonomia, o desenvolvimento integral, a gestão democrática, o respeito às diferenças, e o preparo para a vida em sociedade. Mas esse discurso não encontra respaldo no que o restante do manual propõe.
Divulgado em 2019, o PECIM contou com a adesão de 645 (11,5%) municípios brasileiros. O programa visa dividir entre militares da reserva e civis a gestão administrativa e educacional de escolas públicas de Ensino Fundamental II e Médio. Na seleção das instituições que começam a funcionar este ano, o MEC priorizou escolas em áreas de vulnerabilidade econômica e social, e maior quantidade de alunos. A meta do governo é implementar 216 escolas cívico-militares até 2023.
Em mais de 300 páginas, o guia estipula dentre outras regras que os estudantes estarão submetidos a um sistema de pontos numéricos para elogios e repreensões, com prêmios e castigos, e a direção poderá acionar o Ministério da Defesa ou as forças de segurança estaduais ou municipais em casos de conflitos escolares. Há, ainda, regras específicas para cortes de cabelo e uniforme, com uso obrigatório de uma boina, e pouco espaço para participação estudantil.
“O manual é ambíguo, fala em educação integral mas não se aproxima dessa proposta. É uma concepção de educação mais autoritária, que tenta introjetar as normas pelo constrangimento, e não pelo convencimento, pelo diálogo”, analisa Romualdo Portela de Oliveira, especialista em qualidade da educação básica e diretor de Pesquisa e Avaliação do CENPEC, o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.
Para Telma Vinha, professora na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e especialista em psicologia educacional, o sistema de recompensas é frágil, porque faz com que os estudantes busquem prêmios e evitem punições, em lugar de aprenderem mecanismos de autorregulação, refletindo sobre as consequências dos comportamentos para si e para o outro. Uma vez fora da escola, onde as margens da vigilância são mais largas, pode ser mais difícil aprender a se regular sozinho.
“Nesse modelo de escola não há espaço para tomar decisões, colocar conflitos e chegar em soluções cooperativas e argumentar. É uma escola que forma para a obediência à autoridade, e não para as leis e princípios que valem para qualquer ser humano, indo inclusive na contramão da tendência mundial de promover uma educação para a autonomia e o convívio com a diversidade”.
Além disso, aponta Cleuza Repulho, ex-presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), “essas questões precisam ser resolvidas por educadores. Polícia e exército têm outras funções, e não têm o preparo para isso”.
As escolas cívico-militares não vão promover qualquer tipo de processo seletivo para ingresso nas unidades. Ainda assim, outros mecanismos podem operar pela exclusão dos estudantes.
A partir da análise de outras escolas que já funcionam nesse modelo, a professora da UNICAMP observa que a seleção ocorre dentro da escola: são convidados a se retirarem os alunos que não se adequam ao padrão estético e comportamental imposto ou não atingem as notas esperadas, por qualquer motivo que seja. “Que escola pública é essa que não dá conta de lidar com todo e qualquer aluno?”.
Também pode colaborar para a exclusão de estudantes a cobrança de mensalidades. Ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha autorizado a prática somente em escolas militares, algumas das cívico-militares seguem por um caminho similar: “Uma doação mensal voluntária é incentivada fortemente nestas instituições”, afirma Telma.
Preocupa, ainda, a série de denúncias de abusos e violações contra crianças e adolescentes em escolas militares — só no Amazonas, por exemplo, foram encaminhados ao Ministério Público 120 casos de assédio moral, sexual e violências, que recaem sobre nove colégios militares do estado.
“Que escola pública é essa que não dá conta de lidar com todo e qualquer aluno?”, questiona Telma Vinha
“É terreno fértil para abuso de autoridade, e que pode promover um aparente clima de harmonia e segurança, mas que não forma as pessoas para o respeito com o outro, e tampouco resolvem os problemas no entorno da escola. Então essas crianças e adolescentes continuam submetidas a violências do portão para fora”, afirma Telma, em referências às escolas que se abrem para a comunidade e, a partir da construção dessa relação, amenizam as violências em seu entorno, e contra a própria instituição.
Outro trecho do documento proíbe professores e alunos de expor a escola e seus integrantes nas mídias sociais. Se, por um lado, isso pode funcionar como prevenção ao bullying digital, por outro há margem para tolher a liberdade de expressão e eventuais denúncias que possam surgir.
“Quando eles fazem busca em redes sociais, eles violam a privacidade dos alunos e restringem a liberdade de expressão. Quando eles impõem um padrão estético, eles ferem o ECA [Estatuto da Crianças e do Adolescente], que garante o direito à identidade”, analisa Telma.
A propagação das escolas cívico-militares tem se apoiado fundamentalmente em dois pilares. Um deles é o falso paralelo com as escolas militares mais reputadas, que em geral demonstram bom desempenho acadêmico.
“Mas essas são escolas que fazem seleção no ingresso, e ficam só com os melhores alunos, que em geral tem um nível socioeconômico mais alto. Além disso, elas têm uma infraestrutura exemplar, muito investimento, e profissionais bem remunerados, coisa que as escolas públicas comuns não têm”, explica Romualdo.
O outro pilar é o discurso de maior segurança e ordem para que as atividades na escola funcionem, uma preocupação legítima por parte de tantos professores e famílias abandonados pelo Estado. “O problema é que isso é imposto, e algumas vezes coercitivamente, quando existem outras maneiras de se atingir esses mesmos objetivos”, explica Romualdo.
A partir de sua experiência com diversas redes de educação, Cleuza Repulho, que foi presidente da Undime, aponta caminhos para lidar com as questões de violência e indisciplina, como construir as regras de convivência e de vestimenta com os estudantes, a partir de rodas de conversa. Isso garante que as normas façam sentido para os alunos, gerando mais responsabilidade sobre seu cumprimento.
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“Quando vamos combinar regras de convivência com crianças, no começo elas são muito rígidas nas punições — se falar palavrão, tem que ser expulso da escola — mas, com o passar do tempo, elas vão percebendo que é injusto, e começam a dosar as regras para poder fazer com que a escola funcione melhor sem precisar punir ninguém”, diz Cleuza.
“O grande legado da educação é ensinar a conviver, e não a punir quem é diferente”, diz Cleuza Repulho
E quando esse mecanismo não resulta em melhora de comportamento, é preciso investigar o que está acontecendo na vida daquela criança ou adolescente que, quase sempre, está reproduzindo violências que vive em casa, na comunidade ou na própria escola.
“A escola, por definição, é um lugar de conflitos, porque é o espaço onde crianças e jovens, vindas de diferentes famílias e com jeitos muito diversos de lidar, se encontram. E é assim que vamos aprendendo a lidar com a diversidade. O grande legado da educação é ensinar a conviver, e não a punir quem é diferente”, analisa.