publicado dia 03/04/2019

Professores: entre a vigilância e a autonomia para ensinar

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“Mesmo sem nenhuma lei aprovada em âmbito nacional, a censura aos professores já está em curso”, afirma Russel Dutra da Rosa, professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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A docente refere-se a projetos de lei ligados ao Escola Sem Partido, cujo discurso tem estimulado a perseguição e ameaça aos professores, mesmo que sem nenhum respaldo legal. Exemplo disso foi o caso da deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSC), que divulgou no final de 2018 um canal incentivando os alunos a denunciarem manifestações “político-partidárias ou ideológicas” de seus educadores. Pouco depois, a Justiça determinou a retirada da postagem da deputada das redes sociais, alegando que esta feria a liberdade de expressão dos professores.

Mesmo entre os educadores que não sofreram ataques diretos, muitos estão submetidos a uma vigilância coerciva, o que compromete a qualidade da educação, a autonomia das escolas e instaura um clima de desconfiança e desavença entre famílias e educadores.

“A escola que ainda não cumpria efetivamente seu papel na promoção, reparação e prevenção na violação dos direitos humanos deixa de atuar nesse sentido”, acrescenta Russel.

Liberdade para ensinar e aprender

A liberdade de cátedra, ou a autonomia para que o professor possa ministrar as suas aulas de acordo com as especificidades de suas turmas e território e com base nos documentos da Educação, é garantida pela Constituição brasileira. Nas palavras da ministra Carmem Lúcia, em análise ao ADPF 548, cercear esse direito é inconstitucional:

“Liberdade de pensamento não é concessão do Estado. É direito fundamental do indivíduo que a pode até mesmo contrapor ao Estado. Por isso não pode ser impedida. Portanto, qualquer tentativa de cerceamento da liberdade do professor em sala de aula para expor, divulgar e ensinar é inconstitucional”.

Para Fernando Seffner, professor na Faculdade de Educação da UFRGS, a censura aos professores também fere o direito à educação das crianças, que têm restringida a liberdade de aprender, de fazer perguntas e obter respostas que não necessariamente seriam as mesmas dadas pela famílias.

A escola é justamente uma ampliação do mundo da criança em relação à família e contribui para uma formação integral. Mais do que isso, as crianças não são propriedade das famílias, mas indivíduos com direitos próprios”, observa Fernando.

A vigilância compromete a qualidade da educação, a autonomia das escolas e instaura um clima de desconfiança e desavença entre famílias e educadores

Cláudia Passos, coordenadora de projetos da instituição EcoHabitare, destaca que vivemos um tempo de transição paradigmática, no qual urge implementar uma transformação efetiva da prática pedagógica para responder aos desafios da complexidade do mundo atual.

“Vivemos o prenúncio de uma convergência de crises, que demandará muito mais que decorar conteúdos. Nossa capacidade de empatia, cooperação e criatividade serão solicitadas permanentemente”, diz.

Russel lembra ainda que o silenciamento dos professores também impacta negativamente sua capacidade de intervenção em relação à circulação de informações errôneas ou discursos de ódio.

“Os estudantes trazem para a sala muitas experiências e é importante que seja possível entrar em contato com esta diversidade de perspectivas sobre a vida, em um ambiente respeitoso, onde todas as vozes possam ser ouvidas”, explica.

Ademais, há fontes de informações, corretas ou não, que dificilmente as famílias podem controlar. “Mesmo na escola, em outros espaços, crianças e jovens conversam, além de buscarem todo tipo de informações na internet. Então é importante que pelo menos com o professor a criança possa conversar sobre essas informações e receber uma orientação”, pontua Fernando.

Este papel mediador do educador, aliás, é um tendência em todo o mundo para o processo de construção do conhecimento. “Não será tempo do professor rever a sua prática e estabelecer uma relação de maior parceria com seus alunos? O que impede o professor de assumir um compromisso ético de oportunizar o pensamento reflexivo e crítico, de co-criar uma educação emancipadora, num exercício de poder partilhado?”, questiona Cláudia Passos.

Encontro da Associação de Mães e Pais pela Democracia

Encontro da Associação de Mães e Pais pela Democracia

Crédito: Acervo pessoal

Caminhos alternativos à vigilância

Já existem mecanismos legais para evitar que os professores pratiquem o proselitismo em sala. Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto a Lei das Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estipulam que o professor tem o papel de assegurar uma educação plena com base em critério curriculares definidos e estão sujeitos a medidas administrativas caso se desviem dessa função.

A educação integral, por sua vez, oferece uma série de oportunidades que evitam esta transgressão: a principal delas, aproximar famílias e escolas. “O que esse processo [da vigilância] faz é romper o diálogo, deixar de ouvir o outro. A única saída é olhar para os processos de gestão democrática e dialogar com as famílias e alunos sobre o que é a escola e o que é viver e aprender junto”, recomenda Andréa Gouveia.

É preciso também construir coletivamente acordos com toda a comunidade para o exercício de uma liberdade responsável, diz Cláudia Passos. Neste momento, a escola pode explicar para as famílias o que exatamente se pretende ensinar ao abordar assuntos como educação sexual ou com um debate sobre identidade de gênero. “É uma oportunidade de desmistificar e informar corretamente sobre estes assuntos e metodologias.”

É preciso construir coletivamente acordos com toda a comunidade escolar para o exercício de uma liberdade responsável

Em Porto Alegre (RS), a iniciativa de aproximação entre os dois contextos surgiu por parte de famílias que se mobilizaram e criaram a Associação de Mães e Pais pela Democracia, presidida por Aline Kerber. “Queremos fortalecer a possibilidades dos nossos filhos aprenderem de forma livre e plural, e para que professores se sintam em um ambiente acolhedor “, conta.

A associação reúne desde outubro de 2018 mais de 5 mil membros, relacionados a alunos de mais de 60 escolas, e realizam debates pela cidade para dialogar com outras famílias e demais pessoas interessadas, oriundas de diferentes campos do espectro político, mas defensoras da democracia.

“Entendemos que é fundamental que as famílias estejam cada vez mais próximas para compreenderem o que seus filhos estão aprendendo e não criar fantasmas de que os professores são doutrinadores, inclusive, porque percebemos que há uma pluralidade de posicionamentos entre eles”, explica Kerber.

Todavia, se nada disso for suficiente para desfazer os nós de desconfiança e um educador for filmado em sala, ameaçado ou injustamente denunciado, é possível recorrer ao Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas, que indica detalhadamente como proceder nestes casos.

“Não existe fórmula mágica para sairmos do hábito do conflito quando acessamos as nossas diferenças, sejam elas culturais, políticas, religiosas, ideológicas. Urge humanizar a educação, conceber novas construções sociais de aprendizagem, nas quais se concretize uma educação integral. Nunca será demais falar de convivência e diálogo enquanto condições de aprendizagem”, arremata Cláudia Passos.

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