publicado dia 10/04/2015
Paulo Freire em seu devido lugar
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 10/04/2015
Reportagem: Ana Luiza Basílio
“Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. “É preciso colocar Paulo Freire em seu devido lugar, que é o lixo da história”. Esses foram alguns ecos decorrentes das manifestações contra o governo no mês de março, que reuniram pessoas nas ruas de várias capitais brasileiras.
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Por que Paulo Freire incomoda? A quem? O que esses discursos revelam? Levamos os questionamentos a alguns especialistas, com o intuito de resgatar parte da história e da contribuição do educador pernambucano, declarado patrono da educação brasileira em 2012, pela lei 12.612, sancionada pela presidente Dilma Rousseff.
Para o professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti, é preciso rigor para falar de Paulo Freire. Ele relembra as incontáveis publicações e referências ao educador, algumas disponíveis na internet, e completa: “ele tem um lugar no mundo garantido pelo reconhecimento do seu trabalho, com contribuições na educação, nas artes, nas ciências e até na engenharia”.
Por isso, avaliá-lo somente como educador não basta, opina o professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Miguel Arroyo. “A radicalidade dele tem que ser entendida dentro de nossa história”, garante. Daí a necessidade de se reivindicar o lugar de Paulo Freire. “Sobretudo por parte dos educadores populares que assumem, para além de suas ideias, as concepções de mundo que estão por trás delas”, reflete Gadotti.
O rechaço a Paulo Freire não é novidade e tampouco recente. Tem início já nos fins dos anos 50 e começo da década de 60, momento em que o educador idealiza a educação popular e realiza as primeiras iniciativas de conscientização política do povo, em nome da emancipação social, cultural e política das classes sociais excluídas e oprimidas.
Sua metodologia dialógica foi considerada perigosamente subversiva pelo regime militar, o que rendeu a Freire o exílio. O educador, entretanto, não deixou de produzir e nesse período escreveu algumas de suas principais obras, dentre elas, a Pedagogia do Oprimido.
Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar. (Trecho de “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire)
Arroyo entende que as manifestações atuais contra o educador só mostram que os setores conservadores continuam tão reacionários quanto na época da ditadura.
“E isso surge em um momento em que o partido político que está no poder foi eleito, majoritariamente, pelo cidadão pobre, negro, nordestino. A rejeição a Freire, a meu ver, revela uma questão premente de nossa história de reconhecer ou não o povo como sujeito de direitos”, garante, ponto sobre o qual o educador se apoia para chamar a pedagogia freiriana de “pedagogia dos oprimidos concretos”.
“O que caracteriza a nossa história é não reconhecer os indígenas, os negros, os pobres, os camponeses, os quilombolas, os ribeirinhos e os favelados como sujeitos humanos”, condena o educador. Em sua análise, essa crença serviu, ao longo da história, como justificativa ideológica para que as classes dominantes escravizassem e espoliassem esses setores sociais.
“Tudo isso a partir de uma visão de que somos o símbolo da cultura, civilidade e os outros a expressão da sub-humanidade, subcultura, imoralidade. É isso que nos acompanha ao longo da vida e Paulo Freire se contrapôs a isso, inverteu esse olhar”, analisa Arroyo.
O que ele considera “como um dos pontos mais radicais e politicamente avançados de Freire” foi a valorização da cultura, das memórias, dos valores, saberes, racionalidade e matrizes culturais e intelectuais do povo, contrapondo-se à lógica de que era necessária a inferiorização de uns para garantir a dominação de outros. Na educação, sobretudo, essa radicalidade implica em enfrentamentos.
“Existe a ideia de que nós, cultos, racionais, conscientes, vamos fazer o favor de, através da educação, conscientizar o povo; para Freire não se tratava de conscientizá-los, moralizá-los, mas de reconhecê-los como sujeitos de uma outra pedagogia, capaz de dialogar com essas culturas, identidades e histórias”, esclarece Arroyo.
Essa centralidade nos sujeitos, própria da concepção freiriana, também apoiou a organização de trabalhadores. Na cidade de São Paulo, quando à frente da Secretaria Municipal de Educação, na gestão de Luiza Erundina, Paulo Freire aprovou o Estatuto do Magistério importante não só aos docentes como a todos os profissionais da educação, como avalia a atual chefe de gabinete da deputada estadual Luiza Erundina, Muna Zeyn, que trabalhou com o educador na gestão paulistana. “Para ele, todos estavam em processo de educação, do bedel à faxineira, passando pelo professor”.
Influência também na construção de organizações e movimentos de massa, caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para a militante do setor de Educação do Movimento Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de Pernambuco, Rubneuza Leandro de Souza, a combinação entre necessidade e conscientização foi vital para a organização do movimento.
“Sobretudo em relação à educação. Começamos a nos perguntar qual educação queríamos. Sabíamos que não era aquela que desconhecia o contexto das crianças e as estigmatizava como filhas de ladrões, criminalizando a nossa luta”, critica.
Nas escolas do MST, há uma necessidade de que o conhecimento escolar se articule com a realidade e que a educação se estabeleça como elemento de transformação, “libertadora, contra hegemônica e emancipadora”.
Rubneuza explica que, nos acampamentos, onde muitas vezes não há escolas próximas, o movimento busca auto organizá-las e que, quando o assentamento é conquistado, há um processo de formalização da instituição. “Isso porque a educação formal entra em contradição com nosso processo de luta, quase sempre porque a escola não entende a realidade que a criança vive”.
Há quem ataque a pedagogia freiriana, tratando-a como doutrinária. Gadotti explica que a grande questão é entender que Freire reconhecia a educação como ato político, de cultura.
“A primeira aula de alfabetização em Angicos (Rio Grande do Norte) foi sobre cultura”, relembra o educador. A educação, a formação e até a alfabetização inicial precisa passar pela cultura, pelo reconhecimento do sujeito que conhece, que faz sua leitura do mundo. E é por ser cultural que a educação é política, não no sentido partidário, mas de decidir a vida na pólis (cidade), discutir a vida, o mundo que queremos”.
Ainda de acordo com Gadotti, a educação deve ser vista como um dos elementos de uma cidade educadora , que prevê a educação integral, e não deve se referir só ao conhecimento e ao saber simbólico, mas também ao sensível, ao técnico.
“A integralidade do saber é o tecido técnico, simbólico, político, cultural e implica também a politicidade do ato educativo. Ninguém nega que a educação supõe valores, princípios, ética. É isso que falta discutirmos na educação brasileira hoje”, constata Gadotti.
Em sua análise, a perseguição a Paulo Freire na época da ditadura não apenas o expulsou do Brasil, mas também do sistema de ensino do país, impondo um autoritarismo e associando a educação ao chamado tecnicismo pedagógico, que a afasta de qualquer caráter social.
“Não conseguimos sequer agregar qualidade a esse tecnicismo, mas o fato é que ele é uma herança da ditadura e continua forte”, evidencia.
Para Gadotti, o ethos freiriano não está presente nas escolas hoje. “Estaria se tivéssemos uma educação participativa, democrática, em que a escola formasse para a cidadania, como está na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Não é só formar para o trabalho, mas para a cidadania, para que o povo participe da construção de uma nação. Ao invés de ‘basta de Paulo Freire’, precisamos de mais Paulo Freire para um país mais decente”, reforça.
Arroyo também compartilha da opinião e demonstra preocupação, sobretudo com a proposta de educação integral. “Não podemos entendê-la como mais tempo de escola, nesse mesmo contexto que estamos inseridos. Seria um desrespeito para o povo e iria contra tudo o que Paulo Freire defendia”, alerta.
É fundamental, em sua opinião, que as propostas pedagógicas incorporem os indivíduos em suas totalidades. “Precisamos entender as crianças que chegam às escolas em diversos contextos, o da família negra, o da favela, como filhos de mulheres trabalhadoras. Que saberes e lutas eles trazem consigo para a educação?”, indaga.
“Essas são experiências reais, totais, que exigem uma proposta plural, integrada”, problematiza. Para ele, é urgente pensar que a educação, o currículo diversificado e os saberes prévios podem dar conta de devolver a humanidade roubada das crianças e adolescentes oprimidos. “A função da escola só é integral se ela passa a ser um espaço digno, justo, capaz de recuperar o que lhes roubam”, conclui.
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Verbete Paulo Freire, na Wikipédia
Instituto Paulo Freire
Paulo Freire, o mentor da educação para a consciência (Revista Nova Escola)
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