publicado dia 24/07/2018
O papel da escola brasileira na promoção dos direitos da primeira infância
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 24/07/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
Durante toda a vida humana, nenhuma transformação ocorre com tanta potência quanto do nascimento até os seis anos, período interpretado no Brasil como primeira infância. Entre uma ponta e outra desta etapa, a criança passa de absoluta dependência e de uma linguagem muito própria, para correr, brincar, interagir e falar.
“É o período de maior desenvolvimento cognitivo, social, afetivo e físico. Nesta fase, a criança é um ser frágil e ao mesmo tempo potente, que precisa ser acolhido, respeitado e bem tratado para que essa força se realize”, explica Maria Thereza Marcilio, diretora da Avante.
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E todo esse desenvolvimento não deve ser encarado tão somente como uma preparação para um momento posterior, na expectativa do que os pequenos virão a ser. Eles já são.
Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias irá abordar como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.
“A criança é o futuro, mas também é o presente e tem valor em si mesma. Tem dignidade e subjetividade, tanto quanto um adulto”, afirma Vital Didonet, educador e assessor legislativo da Rede Nacional pela Primeira Infância.
Foi só no período pós-industrial, no entanto, que a criança passou ser compreendida como sujeito social, produtora de cultura, e em plano de igualdade com outros grupos geracionais. Entre as legislações que protegem seus direitos está o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
Outro amparo é o Marco Legal da Primeira Infância, aprovado em 2016, que prescreve um conjunto de ações que visam promover o desenvolvimento infantil dos 0 aos 6 anos de idade, de maneira intersetorial e envolvendo todas esferas do poder público, além da criação de políticas, planos, programas e serviços voltados para esta população.
No âmbito escolar, a Educação Infantil como direito de toda criança e dever do Estado está reconhecido na Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Apesar destes avanços em termos de políticas públicas, os direitos das crianças, bem como a valorização das culturas e linguagens infantis, ainda são desconsideradas em muitos contextos, como explica Rita Coelho, educadora integrante do Fórum Mineiro de Educação Infantil.
Vital Didonet: “O direito da criança não depende da minha capacidade de compaixão ou afeto. Ele está fundamentado nela, como cidadã”
“E por vezes não são desrespeitos graves como a violência, negligência ou a fome. São atitudes sutis, mas críticas no que elas significam para a criança, e que deixam transparecer a maneira de enxergar aquela pessoa no cotidiano. Isso está, por exemplo, em obrigá-la a andar no ritmo do adulto ou não respeitar seus gostos”, aponta Rita.
Para além do direito à saúde, à educação e ao cuidado, a criança também tem direito ao brincar e à experimentação. “O direito da criança não depende da minha capacidade de compaixão, vontade ou afeto para ser garantido. Ele está fundamentado nela, como cidadã”, reforça Vital.
Maria Thereza lembra, ainda, que o direito de estar no território, de ser colocada no mundo, é indispensável para o desenvolvimento integral dos pequenos. “É na cidade que as crianças aprendem a se relacionar com a sociedade para além da família. Para que isso ocorra, os territórios precisam ser menos hostis”, diz a diretora da Avante.
A escola desempenha um papel central na garantia dos direitos das infâncias juntamente ao Estado, à família e à sociedade. Na Educação Infantil, ainda distante da escolarização formal do Ensino Fundamental, as possibilidades são mais amplas se aliadas à educação integral.
Leia o especial Educação Integral nas Infâncias: Pressupostos e práticas para o desenvolvimento e a aprendizagem de crianças de 0 a 12 anos desenvolvido pelo Centro de Referências em Educação Integral, com o apoio do Instituto C&A. O site apresenta um documento de referência, um conjunto de experiências e materiais complementares à discussão.
Assim, o Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas deve ser construído em conjunto com professores, famílias e alunos, e fazer sentido para estes atores. Sobretudo, recomenda Vital, deve ter uma intencionalidade pedagógica: “As crianças não vão para a Educação Infantil só para ficar em um lugar seguro enquanto a família trabalha. Essa escola tem algo a mais para oferecer: aprendizagens, desenvolvimento, ajudar a superar problemas de relacionamento, por exemplo.”
Se a escola existe para as crianças, o protagonismo delas é imprescindível. Seja na participação nas decisões sobre atividades a deliberações sobre a merenda, as crianças precisam ser ouvidas. “Os alunos são os sujeitos da aprendizagem, por isso, são a voz que deve ser prioritariamente ouvida, e eles têm muito a dizer”, afirma Maria Thereza.
Formação docente de qualidade, aliada a condições adequadas de trabalho e valorização profissional, são também essenciais. “Não dá para abrir mão destes fatores, dada a importância do que os professores fazem: formam seres humanos para a vida inteira”, diz Vital.
O papel educativo do espaço físico e do território também precisa ser considerado. “Os ambientes da escola convidam, inibem ou estimulam, e tudo importa: o tamanho, as cores e sons. Ele precisa ser adequado porque, por exemplo, em uma sala pequena as crianças não podem brincar, correr e se movimentar. Pode-se esperar estresse, choro e mal estar”, alerta Vital.
Também importa a acessibilidade a materiais, brinquedos e livros, que quando ao alcance das pequenas mãos podem favorecer a criatividade e a brincadeira. Maria Thereza complementa que as escolas também precisam possibilitar que os alunos conheçam o território ao redor, e estimulem a convivência com a sociedade para além da escola e da família.
Imprescindíveis também são as questões da oferta de matrículas, financiamento e infraestrutura. O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014, trouxe na sua meta 1 a universalização, até 2016, da Educação Infantil na pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos de idade e ampliação da oferta de Educação Infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos até 2024. A primeira parte da meta atingiu o prazo final sem ser cumprida: em 2016, o índice alcançou 91,5%. Sobre as creches, a taxa ficou em 31,9%, o que significa que o Brasil tem mais 6 anos para incluir 1,9 milhão de crianças.
Maria Thereza Marcilio: “É impossível fazer qualquer projeto de futuro enquanto a EC 95 não for revogada. Ela impacta diretamente o PNE”
Maria Thereza destaca ainda a Emenda Constitucional (EC) 95, que congelou o teto de investimentos da União em Educação e Saúde por 20 anos, como uma barreira para a ampliação de vagas e qualificação das escolas, especialmente porque esta EC onera sobremaneira os municípios, principais responsáveis pela Educação Infantil.
“É impossível fazer qualquer projeto de futuro enquanto a EC 95 não for revogada. Ela impacta diretamente o PNE: não conseguimos cumprir diversas metas, como a universalização da pré-escola em 2016, e nem vamos conseguir, enquanto essa emenda estiver vigente”, alerta a especialista.
O resultado dessa conjuntura, explica Rita Coelho, é a intensificação de problemas já existentes, como a falta de vagas nas creches, formação inicial e continuada insuficiente, condições de trabalho precárias, sem plano ou valorização da carreira, que força professores a extensas jornadas de trabalho para complementar a renda.
No Brasil, mais de 1 milhão e 154 mil crianças de 4 e 5 anos estão fora da escola. A maioria (19,8%) é negra, oriundas de zonas rurais (26,8%), e suas famílias vivem em condições precárias e/ou não sabem da obrigatoriedade da matrícula na pré-escola
Para além disso, Maria Thereza lembra que a passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental costuma ser traumática para as crianças, por representar mais uma ruptura do que uma transição.
Isto é, o primeiro ano do Fundamental exige comportamentos e regras muito diferentes da pré-escola, como muitas horas seguidas sentados em carteiras, enfileirados, com poucas horas de brincadeiras livres, e aprendizagens mais compartimentadas e teóricas, quando essa mudança poderia ser construída aos poucos, em conjunto com os pequenos.
A própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) deu pouca atenção e cuidado para esta passagem. Ao definir o 2º ano do Fundamental como a conclusão do letramento, determinou uma outra demanda: a da escolarização precoce. Segundo especialistas, outra fragilidade do documento é sua organização por faixas etárias mal definidas, estreitando as possibilidades da primeiríssima infância, classificando as crianças por parâmetros homogeneizadores.
“Aos 4 ou 5 anos, as crianças ainda estão formando uma noção de globalidade do conhecimento. Nesse momento de desenvolvimento social e afetivo, de experiência do conjunto, não é produtivo ou recomendável fragmentar o conhecimento”, explica Vital.
Com a volta do debate sobre a redução do corte etário no Supremo Tribunal Federal (STF), a situação pode se agravar, com crianças de 5 anos passando por essa mudança. “Precisamos parar todo esse retrocesso e retomar a preservação da infância, sabendo que já estamos perdendo muito nestes anos”, conclui Maria Thereza.
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