publicado dia 20/09/2018
Homeschooling contradiz a escola como espaço de formação cidadã
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 20/09/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
Segundo pesquisa da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), havia 3,2 mil famílias adeptas ao homeschooling em 2016 no Brasil. A maioria (32%) por acreditar que os filhos teriam uma educação mais qualificada fora da escola, e 25% por problemas relacionados aos princípios de fé.
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Estas famílias deverão, a partir de agora, matricular seus filhos em uma escola, uma vez que o homeschooling foi proibido em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de setembro deste ano.
“Quando se formam bolhas nas quais ecoam as mesmas ideias, o entendimento mútuo se torna cada vez mais difícil”, disse o ministro Luiz Fux
No entendimento da maioria dos ministros, a educação domiciliar não deve ser regulamentada pela Suprema Corte, mas pelo parlamento, onde já tramitam projetos de lei pela legalização do modelo de ensino, e de onde podem surgir novos debates.
Em seu voto, Marco Aurélio lembrou que o homeschooling contradiz os esforços da sociedade brasileira na busca progressiva pelo acesso à educação formal no País. Para Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, a questão vai além: a educação domiciliar é inconstitucional e prejudica a democracia.
“Quando se formam bolhas nas quais ecoam as mesmas ideias, o que é comum nas redes sociais, o entendimento mútuo se torna cada vez mais difícil, contribuindo para a fragmentação da sociedade, para a polarização e para o extremismo”, disse Fux.
Quando a escola apresenta insuficiências, deixa lacunas e se torna um ambiente opressor e hostil para os filhos, é compreensível que algumas famílias queiram optar pelo homeschooling, mas esta pode revelar-se uma saída traiçoeira, com prejuízos individuais e coletivos.
Carlota Boto, professora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), avalia que na convivência escolar as crianças se libertam da tutela exclusiva de seus pais, e que o direito à educação é das crianças, e não da família.
“É preciso lembrar que os pais são responsáveis, mas não proprietários de seus filhos. E que as crianças também são filhas de uma comunidade, são filhas de uma nação, cidadãs e sujeitos de direitos individuais. Querer substituir pela preceptoria a escola republicana, uma conquista da modernidade, é um retrocesso”, diz.
A professora Carlota, especialista em Filosofia da Educação, explica que a escola tem três funções na vida das crianças. A primeira é colocar-se como instância intermediária entre a família e a vida social, preparando a criança para seu ingresso no mundo público. A segunda é ensinar a criança a lidar com os códigos da cultura escrita.
Por último, a escola é um espaço de aprendizagem de valores e códigos de comportamento considerados adequados e condizentes com o que a sociedade entende ser importante. A escola, então, supõe a aprendizagem da democracia, da ética e da civilidade.
“É preciso lembrar que os pais são responsáveis, mas não proprietários de seus filhos. E que as crianças também são filhas de uma comunidade”, diz Carlota Boto
“Ao serem educadas apenas em casa, as crianças não serão suficientemente preparadas para ingressar no mundo público e não serão confrontadas com a diversidade social. A família é mais homogênea, a escola lida necessariamente com a pluralidade. É fundamental frequentar a escola para aprender a reconhecer, a respeitar e, por vezes, a enfrentar aquilo que é diferente”, diz Carlota.
Para Telma Vinha, professora na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e especialista em psicologia educacional, a escola tem mais uma incumbência: proteger as crianças de disfuncionalidades familiares.
Em um País onde 69,2% das crianças vítimas de abuso sofrem a violência dentro de casa, segundo o Ministério da Saúde, e 503 mulheres sofrem algum tipo de agressão por hora, essa proteção não é desprezível.
“Se a criança e a mãe apanham, se ela sofre abusos, é na escola que pode aprender que isso é violência, que pode pedir ajuda. Zelar pela qualidade da infância é um dos deveres da escola”, diz Telma.
Um dos argumentos dos defensores do homeschooling é de que a escola dos filhos tornou-se violenta, que sofrem bullying, ou que a qualidade do ensino está aquém do necessário.
“O alerta dos defensores da educação domiciliar sobre os problemas da escola serve como sinal amarelo para os gestores educacionais olharem para estas questões. De fato, a escola não pode continuar sendo somente um prédio pensado para o século 19, com professores formados no século 20, ensinando crianças do século 21”, diz Carlos Roberto Jamil Cury, professor no departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Em parecer, o Ministério da Educação (MEC) afirmou que a educação domiciliar vai contra a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em todos os documentos, a responsabilidade pela educação é tanto da escola quanto da família.
Para Carlos, parte dessa ânsia por resguardar os filhos da escola está, também, na intenção de perpetuar determinados valores contrários aos de uma sociedade democrática e laica.
“Não podemos ignorar que há vários grupos hoje avessos a determinadas condutas próprias de uma sociedade secularizada e plural, e que encontram em espaços religiosos e privados uma espécie de guarida em relação ao que consideram ataques a uma vida mais regrada e ascética”, diz.
Defensores da educação domiciliar também argumentam que frequentar a igreja, o clube, ou cursos extracurriculares, por exemplo, pode substituir a escola enquanto espaço de convivência social dos filhos, promovendo sua inserção na sociedade. A professora Carlota discorda: “a escola é uma forma de socialização específica, insubstituível.”
Há ainda outro problema, segundo Telma. A família, ao escolher quais serão estes espaços de convivência, continuam a controlar a socialização dos filhos, potencialmente escolhendo comunidades que pensam de maneira similar. Enquanto a escola, sobretudo a pública, tem por princípio a abertura para todos. “O que precisamos para nossas crianças é o convívio e o respeito com o diferente”, aconselha Telma.
“O homeschooling é uma medida individualista para um problema coletivo, porque o compromisso de educar é de todos, especialmente da escola e da família”, diz a professora Telma Vinha
A professora também explica que, devido à configuração da família, algumas aprendizagens só podem acontecer na escola. No núcleo familiar, as relações são estáveis — nenhuma mãe deixa de ser mãe, ou filho deixa de ser filho. Já na escola, as relações são instáveis, uma oportunidade de aprender sobre a manutenção dos vínculos a partir do próprio comportamento.
“Para a criança manter uma amizade, tem que regular os discursos, lidar com emoções, aprender a tratar o outro, e entender como deve ser tratado”, diz Telma. Em espaços onde as crianças não convivem regularmente, os vínculos também não são profundos o suficiente para dar início a essa aprendizagem.
Carlos Roberto Jamil Cury lembra ainda que outros grandes espaços de convivência social estão se desfazendo. “A rua, onde as crianças brincavam, se tornou um lugar de perigo. Perdemos também a grande família, porque muitos moram longe, e as grandes cidades têm questões como a mobilidade. Perdemos a vizinhança, porque agora todos se veem obrigados a viver de maneira acelerada e enclausurada”, diz.
A solução para os problemas e insuficiências da escola está no exato oposto do que pregam aqueles que tiram as crianças e jovens da sala de aula. “Entre as escolas que trouxeram a família para perto os frutos se revelam muito positivos, com a diminuição da violência e impactos positivos nas relações de ensino-aprendizagem”, diz Carlos.
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Carlota acrescenta que as famílias devem participar efetivamente da vida escolar, para além de só fazer cobranças, e que as duas instituições têm seu papel. “Se professores não ensinarem bem, seus alunos contarão para os pais; e estes poderão conversar com a escola. A quem as crianças que estudam em casa recorrerão quando, eventualmente, forem constrangidas moral ou fisicamente pelos próprios pais que as ensinam? Se elas aprendem em casa, quem controla esses pais?”, questiona a docente.
Em suma, tirar os filhos da escola não resolve os problemas coletivos e constitutivos de nossa sociedade, que devem ser encarados. “O homeschooling é uma medida individualista para um problema coletivo, porque o compromisso de educar é de todos, especialmente da escola e da família, que são complementares e necessárias para a formação do cidadão. Nenhuma dá conta desta tarefa sozinha”, constata a professora Telma.