Sem provas ou salas de aula, escola atrela currículo ao território em Belo Horizonte (MG) 

Publicado dia 20/12/2023

🗒️ Resumo: Uma escola pública sem salas de aula, seriação, estudantes enfileirados, provas tradicionais e aulas expositivas, que usa o tempo integral para desenvolver roteiros de aprendizagem e experiências educativas interdisciplinares, práticas e contextualizadas ao território, além de dispor de uma biblioteca e uma academia comunitárias. Conheça a experiência, a organização pedagógica e os principais documentos da Escola Municipal Polo de Educação Integrada (EMPOEINT), em Belo Horizonte (MG).

Onde antes funcionava uma Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor) – atual Fundação Casa –, extinta em 2006 por ter se tornado sinônimo de graves e variadas violências contra crianças e adolescentes, hoje funciona a Escola Municipal Polo de Educação Integrada (EMPOEINT).

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Localizada na periferia de Belo Horizonte (MG), a escola busca ressignificar a história do espaço e apresentar à comunidade local “uma forma de Educação […] que não signifique a privação de liberdade e a negação à cidade”, diz um trecho do Projeto Político Pedagógico da unidade, que permanece aberta de domingo a domingo, das 6h às 22h, para estudantes, famílias e a comunidade.

Conheça o PPP da EMPOEINT  

Em um amplo salão, sob as árvores, na quadra ou no bairro, 180 estudantes de 6° a 9° ano estudam em grupo seus roteiros de aprendizagem, produzidos pelos docentes da escola, e participam de atividades práticas, artísticas, tecnológicas e ambientais de forma atrelada ao currículo e ao território. 

“Meu filho estava passando por momentos de isolamento e, com a pandemia, piorou muito. Na EMPOEINT, com a quebra do paradigma de uma sala de aula tradicional, ele conseguiu interagir e aprender. Fora que descobriu um amor por esporte, participa do coral e teatro, o que antes nunca havia conseguido realizar. Hoje, vejo que meu filho tem prazer em estar na escola e ajudar os colegas”, compartilha Pâmela Silva Lutes, mãe de Gabriel. “Acredito que com esse modelo teremos cada dia mais jovens com vontade de estar na escola”, complementa.

A unidade, fundada em 2018, também oferta Educação de Jovens e Adultos (EJA) em três turnos a 160 estudantes e recebe outros 800, de oito escolas ao redor, que compartilham a infraestrutura da unidade para desenvolver suas atividades em tempo integral.

“É um privilégio ela ser frequentada por outras escolas e nós trabalhamos para fazer a integração com elas, para que não seja apenas o uso dos equipamentos. Este ano, por exemplo, fizemos alguns festivais juntos ao longo do ano”, conta Glaucia Aparecida Vieira, coordenadora pedagógica geral da EMPOEINT.

As áreas externas e naturais são amplamente aproveitadas para atividades escolares e de descanso

Crédito: Shirlei Lopes

Próxima à comunidade, a escola criou uma biblioteca e uma academia que podem ser utilizadas pelas pessoas do bairro, além de ceder parte de seu espaço para um coletivo de jovens conduzir um cursinho popular. 

“Desejamos ser um espaço de diálogo e formação, uma escola viva e aberta à comunidade, para que o conhecimento escolar tenha sentido e possa provocar transformações no bairro e na vida das pessoas. Também somos um pólo de enfrentamento ao racismo, homofobia e machismo e de promoção de direitos”, define Shirlei Lopes, gestora da EMPOEINT.

Inspirações e desafios

A Escola da Ponte, famosa unidade portuguesa de Educação que inspira escolas a repensar toda a sua pedagogia e infraestrutura, é a principal referência da EMPOEINT. Mas, para contextualizar ao território brasileiro, a equipe voltou seus olhos para experiências de Educação Integral, em tempo integral ou não, como o CIEJA Campo Limpo, EMEF Amorim Lima, EM Waldir Garcia, bem como outras unidades do Escolas2030.

“O apoio institucional que recebemos da Secretaria de Educação fez toda diferença para que a escola pudesse existir, porque além de oferecer toda a infraestrutura, a rede definiu junto os caminhos da legislação, do financiamento e manutenção dos profissionais, para a escola funcionar”, aponta Shirlei.

Esse apoio também é fundamental para que a equipe tenha condições de sustentar o trabalho pedagógico diante de famílias e comunidades acostumadas ao formato tradicional de uma escola. “As famílias passam quatro anos desconfiadas. No final, perguntam por que não tem Ensino Médio”, comemora Shirlei, que incentiva o diálogo e a aproximação da comunidade para mostrar como a unidade funciona.

A formação de professores e demais profissionais da escola também é um desafio, já que a maioria deles não foi formado para atuar em uma perspectiva integral da Educação e como mediadores de aprendizagem e desenvolvimento integral, tampouco tiveram a oportunidade de trabalhar em escolas assim. 

Além de formações continuadas, tempo para estudo e trabalho coletivo, a EMPOEINT também realiza, de segunda a quinta, reuniões com todos os profissionais da escola para tomar decisões e organizar o percurso dos estudantes.

“Para mim foi um choque”, compartilha a professora Simone Mol da Silva, que trabalhou por 20 anos em escolas públicas e particulares tradicionais antes de chegar à EMPOEINT. “Achava que eu não estava produzindo por não dar aula expositiva. A gente conclui que dar aula é só estar à frente do estudante e transmitir o conhecimento, mas não é assim que eles aprendem melhor”, afirma. 

Como a EMPOEINT funciona

Salão de Saberes

Conheça um modelo de roteiro de aprendizagem do 8° ano.

Em uma grande área da escola, o Salão dos Saberes, 180 estudantes são agrupados em dois coletivos. Um é formado pelos 6° e 9° anos e o outro pelos 7° e 8° anos. “Os mais velhos já construíram uma certa autonomia e conhecem a escola, então ajudam a acolher quem vem de outra estrutura e compartilham saberes”, explica Glaucia.

Em mesas redondas com quatro ou cinco alunos, as crianças e adolescentes estudam por meio de um roteiro de estudos. Para todos, o eixo temático é o mesmo, o que varia são as especificidades e aprofundamentos de cada ano. “Os professores fazem a mediação das aprendizagens e os estudantes vão se ajudando”, relata a coordenadora pedagógica.

O tempo integral é organizado, por dia, em quatro módulos de 1h45 cada, que variam entre o Salão de Saberes, dedicado às áreas do conhecimento, Vivência Educativa, Conexão dos Saberes e Equipes de Responsabilidade/Roda de Conversa.

Salão onde estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental compartilham saberes

Crédito: Shirlei Lopes

Confira a organização do percurso escolar dos estudantes.

Os módulos das áreas do conhecimento são organizados pelo coletivo de professores e indicados aos estudantes no início de cada semana. “Aqui trabalhamos com regências compartilhadas, então dificilmente os professores estão em uma área sozinhos”, aponta Glaucia. “Eles trabalham os conteúdos por eixos temáticos e organizam seu próprio material didático, muitas vezes autorais ou adaptados de livros”, complementa. 

Cada eixo temático é destrinchado em uma sequência didática de acordo com o ano do estudante: 

  1. Para início de conversa: Por meio de filmes, músicas ou algo que possa despertar o interesse da turma pelo tema, este roteiro faz uma sensibilização do tema e ativação de conhecimento prévio.
  2. Aprofundando um pouco mais: Apresenta o conteúdo de forma interdisciplinar e transdisciplinar.
  3. E aí, o que você aprendeu? Faz uma retomada, relaciona os conteúdos com o tema, promove a socialização dos achados e há uma avaliação, cujo formato varia de acordo com a proposta.

Além do salão, essas atividades também podem ser realizadas em outros espaços, como a biblioteca, auditório, oficinas, laboratório de robótica, ciências, e matemática, espaços abertos e naturais, quadras, sala de dança, música, estúdio de rádio e a academia.

Vivência Educativa

As atividades acontecem duas vezes na semana. No início do ano letivo, os estudantes experimentam Capoeira, Taekwondo, Dança, Música, Teatro, Educação Ambiental, Robótica, Informática e Audiovisual e escolhem duas delas para cursar durante o semestre.

Ofertadas por monitores contratados, que lá são chamados de Educadores de Vivências, eles trabalham em conjunto com os professores das áreas de conhecimento o tempo todo, como na produção dos roteiros de estudo.

“Eu sou do Teatro, então no roteiro da Grécia, por exemplo, vão ter as questões relacionadas a Geografia, História, e outras, e eu trabalho com eles o teatro grego, o uso das máscaras e a questão das mulheres não poderem participar das peças”, conta Daniele Cristina Braga, Educadora de Vivência de Teatro.

Conexão dos Saberes

Esta atividade semanal, com duração semestral, conecta conhecimentos escolares e saberes vivenciados. Um professor e um monitor, no mínimo, propõem uma atividade que pode não ter a ver diretamente com suas áreas. Hoje, há grupos como o de Astronomia, Artes Urbanas e SLAM, Jogos de Tabuleiro, Corpo no Mundo, entre outros. 

“Na Conexão Ásia, que fiz com um professor de Matemática, ele dava aulas de Mandarim, Japonês e Coreano e eu dava a parte de cultura asiática. Na do Teatro do Oprimido, estudaram Augusto Boal, montaram uma peça e discutiram temas como direitos e como deixar de ser oprimido sem ser opressor”, relata Daniele.

Gestão democrática: Equipes de responsabilidade e rodas de conversa

Outro módulo semanal dos estudantes é dedicado à participação dos estudantes em decisões relacionadas à escola. “Quando precisamos de uma intervenção ou decisão importante, discutimos com eles em roda, eles fazem uma proposta, montam uma assembleia e fazem uma votação”, explica a coordenadora pedagógica. 

Roda de conversa para gestão democrática da escola

Crédito: Shirlei Lopes

Quando não há essa necessidade, eles se dedicam às Equipes de Responsabilidade, que se dedica a pensar o que precisa ser melhorado na escola e como fazer isso. Ao longo do ano já agiram sobre a organização do salão e do intervalo, realizaram ações de fomento à leitura, mediação de conflitos e comunicação, e organização de eventos com outras escolas. “Como um todo, é uma experiência de formação cidadã”, observa Glaucia. 

Tutoria e avaliação: um olhar integral para os sujeitos 

Na EMPOEINT, a dupla de professores e Educadores de Vivências também atua em conjunto na tutoria, a fim de dividir impressões e acompanhar de perto cada um dos estudantes, em todas as suas dimensões. “São adultos de referência com quem podem contar para o que precisarem”, explica Glaucia. 

Quando há necessidade, acionam o sistema de garantia de direitos. “Há muitos casos de violência doméstica, trabalho infantil e este ano houve um de abuso sexual”, lamenta a coordenadora pedagógica.

Essa equipe também é responsável por avaliar os estudantes em todos os momentos, enquanto as crianças e adolescentes também realizam autoavaliações. Na hora de fechar as notas, o coletivo de professores e educadores também se reúne para avaliar cada um individualmente. 

Confira um modelo de autoavaliação dos estudantes da EMPOEINT.

A educadora Daniele nota que esta forma de trabalhar favorece a autoestima dos estudantes e suas diferentes formas de aprender e expressar a aquisição de conhecimentos e habilidades. 

“Tenho um aluno que veio de outra escola e chegou com medo de tudo, sem confiança nenhuma. Ele foi vendo que em Português ele podia não ser muito bom, mas decorava 20 páginas de roteiro de teatro em um dia, por exemplo. Hoje ele já é super autônomo, entende seu papel, foi o protagonista da última peça e é campeão de badminton de Belo Horizonte. Ele não ficou reduzido a ser ‘ruim’ em Português”, indica Daniele.

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) 

A EMPOEINT recebe 160 jovens e adultos que tiveram seu direito à Educação negado em algum ponto de sua vida. Há casos de vulnerabilidade social, abuso e maus tratos, mulheres que precisaram ingressar no mercado de trabalho ou cuidar de sua família e cada vez mais jovens que foram excluídos da escola. 

De segunda a quinta, a EJA oferta 3 horas de atividades. As turmas são multisseriadas, há roteiros de aprendizagem, projetos e muitas saídas pela cidade. “O formato convoca os estudantes à colaboração e trocas intergeracionais, e os professores a refletirem sobre a personalização do ensino e as trajetórias não-lineares de aprendizagem”, diz a gestora Shirlei.

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