publicado dia 14/11/2018
Ntxuva, o xadrez africano, ensina matemática de forma lúdica
Reportagem: Thais Paiva
publicado dia 14/11/2018
Reportagem: Thais Paiva
Pelas ruas de Maputo, Moçambique, uma cena se repete. Debruçadas sobre um curioso tabuleiro repleto de concavidades, mãos hábeis passam pedrinhas de um lado para outro sob o olhar atento dos espectadores. Trata-se de uma partida de Ntxuva, o xadrez africano, um jogo de estratégia existente no continente desde antes da dominação da África pelos europeus.
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Quem conta é o professor Alberto Chirinda, de Maputo, Moçambique, que vive no Brasil desde meados de 1990. Recém-chegado ao País, Alberto lembra ter se surpreendido com o desconhecimento dos brasileiros sobre a África. “Nós sabíamos muita coisa do Brasil através do futebol, carnaval, telenovelas e curso a distância e também pelos brasileiros que moravam e trabalhavam nos nossos países”, conta.
A etnomatemática propõe ensinar matemática levando em consideração outras culturas que também produzirem e produzem conhecimento, de variadas maneiras, mas que são frequentemente apagadas das narrativas da sociedade e da escola.
Foi apenas no contexto da aplicação da Lei 10639/03, que prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, que Alberto começou a perceber uma mudança nesse quadro. Procurado por colegas sobre possíveis materiais da cultura africana que pudessem desenvolver em sala de aula, lembrou-se do Ntxuva, que explora vários conceitos matemáticos e estratégicos. “Os alunos se encantaram”, relembra.
O Ntxuva é um jogo tradicional da África subsahariana com origem mais provável no Egito. É uma variante do mancala, família de jogos de tabuleiro com várias concavidades e com o mesmo princípio geral de distribuição e conexão de peças. A partir do Nilo, os mancalas teriam se expandido progressivamente para o restante do continente africano e para o Oriente. “O Ntxuva está presente no dia a dia dos moçambicanos. Hoje, em Moçambique, o Ntxuva faz parte das modalidades do Festival Nacional dos Jogos Tradicionais. É um esforço do governo local para resgatar a nossa cultura”, conta Alberto.
Além de bem cultural, o jogo é considerado parte da etnomatemática, pois compõe o conhecimento matemático desenvolvido por povos não-europeus, aplicado na solução de suas realidades.
Entre as habilidades cognitivas que o Ntxuva desperta estão a orientação espacial, cálculo aritmético e construção de estratégias. “O Ntxuva trabalha alternativas e conexões. Cada casa contendo peças é uma alternativa de saída, uma opção. Cada opção pode ter uma ou várias conexões que levam ao objetivo final: eliminar as peças do adversário e retirá-los do tabuleiro” explica Alberto.
Estas opções e conexões exigem cálculos simples, mas ágeis e volumosos. “Esse volume de cálculos é que estimula o raciocínio aritmético, lógico e estratégico, além da memória das crianças”.
O tabuleiro Ntxuva é indicado para crianças a partir dos seis anos de idade. No início, as crianças jogam sem realizar cálculos, isto é, só na sorte. “Com o tempo apercebem-se da necessidade de aprender a pensar, calcular e tomar decisões para conseguirem atingir o objetivo. Uma competência importante para o mundo moderno”, explica o professor.
Ao utilizá-lo em sala de aula, o educador pode trabalhar o jogo de forma coletiva, formando dois grupos de alunos para se confrontar. Desta maneira, estimula a discussão e decisão em grupo. Além disso, o Ntxuva é um jogo inclusivo: mesmo crianças com algum tipo de deficiência podem participar.
É possível trabalhar também a natureza das estratégias envolvidas no Ntxuva: há estratégias para eliminar ou retardar o movimento das peças adversárias; criação de desertos (quando as casas ficam vazias) que impedem a organização das peças do adversário, entre outras. “São estratégias de guerra que permitiram que nossos antepassados conseguissem dominar outros povos e tenham registrado, aqui e ali, algumas vitória sobre os colonizadores. Daí termos nomes como Soundiata Keita e Shaka Zulu como expoentes africanos de estratégias militares”, conta Alberto.
Outra abordagem possibilitada pelo jogo etnomatemático é trabalhar com os estudantes o modo de pensar dos africanos, inclusive, no que diz respeito ao seu repertório linguístico. “O educador pode trabalhar os provérbio africanos. É comum nos jogos de Ntxuva os jogadores fazerem citações quando realizam uma estratégia bem-sucedida. Isso é feito só para desestabilizar o adversário.”
Além do engajamento das crianças e jovens com a atividade, jogos como o Ntxuva substituem exercícios cansativos e repetitivos. Ao visualizar, na prática, o retorno imediato de suas hipóteses e cálculos, as crianças deparam-se com conflitos que devem ser resolvidos entre elas mesmas, com autonomia e visando o bem comum.
Outro benefício do uso dos jogos em sala de aula é que estes fornecem dados para o educador conhecer a estrutura mental dos seus alunos em uma situação de vivência prática. “O papel do professor é importante, pois é ele que circula entre os grupos, instruindo sobre as regras do jogo, jogando com as crianças, apresentando-lhes desafios e também oferecendo subsídios para suas decisões.”
O esforço de Alberto Chirinda para a popularização no Brasil da etnomatemática já rende frutos. Seu trabalho com o xadrez africano chegou ao conhecimento da Secretaria de Educação do Paraná, que adquiriu quase 100 tabuleiros Ntxuva para distribuir nas escolas do interior do estado. “Também fui convidado a dar uma oficina de Ntxuva para professores do Paraná no âmbito da etnomatemática e da implantação da Lei 10639”, conta.
Para o educador, ações como estas revelam a força e importância desta legislação que reconhece o legado dos africanos. “Houve um despertar para a contribuição dos negros africanos nas várias áreas da nação brasileira. Hoje, vejo professores entusiasmados com a temática africana e que a cada dia descobrem a história contada pelos próprios africanos sobre antigos impérios, comidas típicas, música e escritores renomados”, comemora.
Baixe as regras completas do Ntxuva e veja o vídeo abaixo.