publicado dia 31/07/2018
Alfabetização e desenvolvimento integral: novos pactos, novos desafios
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 31/07/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
Aprender a ler e escrever não é tarefa simples. Envolve processos cognitivos complexos, coordenação motora fina e alta capacidade de abstração. Mais do que isso, a alfabetização diz sobre ensinar e aprender a ler o mundo e nele expressar-se.
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“Na alfabetização, o sujeito se apropria de uma linguagem e esta o transforma. Muda seu modo de pensar, constitui a sua identidade, porque essa aprendizagem é indissociável da prática social, que é o uso da leitura e da escrita no cotidiano, para se comunicar, para compreender, para se expressar e se emocionar”, diz Monica Correia Baptista, do Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (Ceale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias irá abordar como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.
Mas para que isso ocorra de modo a respeitar os tempos de cada criança, é preciso enxergar a alfabetização como um processo que se inicia desde o nascimento e que perpassa a linguagem corporal, a experimentação do mundo, a imaginação, as relações e, principalmente, o brincar.
Isto porque, ao fingir que um cabo de vassoura é um cavalo, por exemplo, a criança está se apropriando da capacidade de representação, tão valorosa para aprender uma língua. Mais do que isso, é por meio das brincadeiras que as crianças começam a compreender e interpretar o mundo.
“Às vezes, inicia-se a alfabetização sem antes dar tempo para a criança experimentar, declamar uma poesia, pronunciar a sua opinião. Sem dar espaço para contar suas histórias. O resultado é o comprometimento da capacidade de compreensão do mundo dessas crianças”, explica Vital Didonet, educador e assessor legislativo da Rede Nacional pela Primeira Infância.
Se o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), assumido em 2012 pelos governos Federal, dos estados e municípios, e o Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado em 2014, consideravam como prazo máximo para a alfabetização das crianças por volta dos oito anos de idade ou o 3º ano do Ensino Fundamental, isto mudou com a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Com uma mudança incorporada a partir de sua terceira e última versão, o documento estabeleceu o 2º ano ou os 7 anos de idade como o limite para a conclusão do processo de alfabetização. Com a nova configuração, a partir de 2019, a aplicação da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) também será antecipada para o 2º ano do Fundamental.
Com uma mudança incorporada a partir de sua terceira e última versão, a BNCC estabeleceu o 2º ano ou os 7 anos de idade como o limite para a conclusão do processo de alfabetização
A alteração foi bastante criticada por especialistas por reduzir o conceito de “criança alfabetizada” a uma noção ultrapassada de instrumentalização das práticas de leitura e escrita e por possivelmente contribuir para a cultura do fracasso escolar. Dados da última ANA, de 2016, mostram que a antiga meta já esbarrava em desafios: 54,7% das crianças apresentaram nível insuficiente de proficiência em leitura, 33,95% em escrita e 54,4% em matemática ao fim do 3º ano do Ensino Fundamental.
Os índices levaram o Ministério da Educação (MEC) a lançar a Política Nacional de Alfabetização – conjunto de ações que envolvem a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a formação de professores, o protagonismo das redes e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). O governo federal também anunciou a criação do Programa Mais Alfabetização, que deve atender, a partir de 2018, 4,6 milhões de alunos com a presença de assistentes de alfabetização, que trabalharão em conjunto com os professores em sala de aula.
Soma-se a este desafio a possibilidade do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que é aceitável crianças de 5 anos serem matriculadas no Ensino Fundamental.
“Por vários lugares do Brasil eu vejo escolas fazendo atrocidades com crianças de 3 ou 4 anos para alcançar a alfabetização. Elas são submetidas ao mesmo sistema de organização de tempo e do espaço escolar que as crianças de 7 ou 8. Se já é inadequado para estas, imagina para as menores”, diz Monica, contando que, por vezes, se depara com crianças na Educação Infantil realizando 4 horas de atividades extenuantes e privadas de brincar.
Para a professora, é preciso entender a alfabetização como um processo de longa duração e não como um conhecimento circunscrito a uma faixa etária. “Porque as crianças vão crescendo no grau de alfabetização e de competência no uso da língua”, explica.
No desenvolver da comunicação das crianças, os adultos têm fundamentalmente duas funções, como explica Monica Baptista: oferecer as condições básicas para que elas cresçam, e perceber quando as crianças já estão prontas para novas aprendizagens, por exemplo, o momento de começar a ensinar a escrita do nome e de algumas palavras.
“É preciso observar o que a criança está perguntando. Se ela não está envolvida com a representação gráfica das palavras é um equívoco introduzir o conhecimento escrito, porque as suas perguntas sobre o mundo ainda são outras, que precisam ser apoiadas neste momento”, explica Monica.
Bernadete Gatti, presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, recomenda que se a criança já começa a perguntar sobre palavras e identificá-las, porque vive imersa em um mundo letrado, o adulto pode contribuir com o acesso ao conhecimento. O que não é recomendável, é forçá-la a esse processo.
Bernadete Gatti: “Qualquer antecipação priva a criança de uma estruturação neurológica adequada, cria barreiras e gera estresse”
“Podemos acionar ambiências onde ela vai se apropriando da linguagem escrita, das suas formas de expressão, lidando com isso de maneira menos estruturada, mais lúdica. Lá no Ensino Fundamental podemos pôr a criança em contato com os processos de alfabetização de uma maneira mais regular, mas não é recomendável que isso surja antes. Qualquer antecipação priva a criança de uma estruturação neurológica adequada, cria barreiras e gera estresse”, explica Bernadete.
Hilda Micarello, professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), afirma que quando se inicia o contato com a leitura e a escrita, os professores precisam planejar uma rotina para que a literatura faça sentido para os alunos e tenha espaço na vida da turma. Além disso, precisam respeitar os vários ritmos de aprendizagem.
“O professor deve ter o cuidado de acompanhar o desenvolvimento de cada aluno, pois as crianças podem ter ritmos de aprendizagem bem diferentes, o que requer do professor a capacidade de adequar as situações didáticas a essas diferenças”, explica Hilda.
Para que todo esse processo de alfabetização se concretize, a escola precisa de amparo para oferecer a infraestrutura necessária, como uma biblioteca e um espaço de leitura, além de professores bem formados e valorizados.
“Hoje a grande rotatividade de professores pelas escolas e turmas dificulta que o professor possa se especializar como alfabetizador”, diz Hilda Micarello.
Para Bernadete Gatti, a preparação de professores é o maior desafio atual da alfabetização. “Isso porque a aprendizagem é uma relação muito intensa, dos significados das línguas, dos signos. Qualquer aprendizagem tem que ser feita com base em relações. Quando esse alicerce está firme, todo o resto flui”, conclui.