publicado dia 31/08/2018
SIEI 2018: enxergar as juventudes para transformar a escola brasileira
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 31/08/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
No seio do brejo paraibano, um garoto descobriu espécies raras de orquídeas que não existem em nenhuma outra parte do mundo, mas ninguém tinha notado até então. Com apoio da escola, ele passou a plantá-las pela cidade, fazendo com que fossem apreciadas. Esta simples e potente ação é apenas um dos exemplos da força das várias juventudes que, por vezes, é ocultada sob um falso véu de desinteresse e apatia.
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Quem trouxe essa história foi Raquel Franzim, coordenadora do programa Escolas Transformadoras, durante o 4º Seminário Internacional de Educação Integral (SIEI), que ocorreu em São Paulo nos dias 28 e 29 de agosto, e reuniu especialistas, professores e alunos para debater a escola brasileira e a necessidade de reconhecer o território e as pessoas que o compõem.
“É preciso resistir à indústria que quer construir uma juventude amorfa e apática aos desafios do nosso tempo”, disse Raquel Franzim
“Ele era um menino da escola municipal Nossa Senhora do Carmo, em Bananeiras (PB), que desde pequeno se interessava pelas flores, mas isso ficou escondido no currículo escolar. É preciso resistir à indústria que quer construir uma juventude amorfa e apática aos desafios do nosso tempo”, disse Raquel.
A principal crítica da especialista girou em torno do desconhecimento sobre quem são os estudantes e os professores, e o hábito de ignorar que educação se faz com o outro.
“Como educadores, mas também como estudantes, precisamos reconhecer que não se faz escola sem conhecer quem lá está. E uma escola com sentido só poderá ser construída no espaço entre a cultura centrada no adulto e a supremacia da cultura juvenil. É entre um e outro que se poderá dialogar e construir sentidos na escola de hoje”, afirmou.
Na tentativa de conhecer mais sobre os jovens que estão nas escolas brasileiras, foram convidados ao palco do evento dois estudantes de Ensino Médio, ambos cursando o 2º ano, para dividirem suas percepções sobre a educação.
“A escola tem que nos preparar para o novo, mas ainda segue uma mentalidade muito antiga. Tem que entender que a gente também aprende vivendo, isso é experiência, isso é o vamos levar para sempre”, disse Ana Beatriz Mota, de Salvador (BA).
O outro convidado, Gianluca Vilela Piccin, de Santos (SP), teceu comentários sobre o que espera da educação: “A escola trabalha com o medo do que vai acontecer com a gente se não formos bem sucedidos, quando na verdade deveria trabalhar com incertezas, com questionamentos e dúvidas. Porque é isso que precisamos: jovens que saibam correr atrás de soluções, e não só decorar e cumprir tarefas mecânicas.”
Ainda na tentativa de entender quem são esses jovens, o Cenpec realizou a pesquisa “Participação e engajamento de jovens e suas repercussões em sua vida escolar: o caso das ocupações de escolas em São Paulo”, entrevistando estudantes que cursavam o Ensino Médio em 2015.
Os achados do estudo dialogam com as falas dos jovens palestrantes, indicando uma relação muito negativa entre alunos e direção escolar, além de grande insatisfação com as possibilidades de descoberta e exploração que a escola proporciona. Eles querem mais.
“Querem as mesmas oportunidades para todos e, ao mesmo tempo, o direito de cada um saber de si, construir um lugar no mundo. Não se confirma a noção corrente de jovem desinteressado. Ao contrário, estão engajados e interessados em ter educação de qualidade, participativa e dialogada”, explicou Joana Buarque, pesquisadora da Diretoria de Pesquisa e Avaliação do Cenpec.
Se a transformação da escola depende de conhecer as juventudes que nela estão, isso também significa encarar as diferentes realidades sociais e econômicas brasileiras, bem como o racismo, machismo, opressão, discriminação e a LGBTfobia que marcam a experiência educativa de tantos jovens.
“Eu, enquanto mulher preta, penso no jovem negro, alvo preferencial das mortes. Na menina preta, alvo das violações. As mesmas pessoas assassinadas todos os dias, os negros, gays, lésbicas, trans, são as ridicularizadas na escola. E o que acontece é que muitos passam a negar sua identidade para se sentirem incluídos”, disse Maíra Azevedo, jornalista e youtuber mais conhecida como Tia Má.
Para ela, contudo, a escola não é por inteira negativa, e relembra com indignação quando seu pai dizia que se ela não tirasse boas notas iria para a escola pública. “Como se a escola pública fosse um castigo. Como se fosse coisa ruim. E não é. Ela é um instrumento poderoso para transformar vidas”, disse.
Refletindo mais sobre a infraestrutura e os aspectos físicos de muitas escolas públicas brasileiras, e como isso impacta a educação, Thiago Vinicius, idealizador da Agência Popular Solano Trindade, abriu sua fala declamando a poesia “Tem gente com fome”, do autor que inspirou o nome da agência, um empreendimento cultural que atua na zona sul de São Paulo.
Ouça:
“A escola é um dos poucos lugares na favela que tem credibilidade. Não ir pra escola é motivo de ser zuado na turma de jovens. Às vezes, a gente não tem mesa, cadeira, mas a escola tem. Às vezes, a gente não tem nada, mas a escola tem, e está fechada no final de semana”, criticou Thiago.
Projetando uma imagem de uma escola pública da zona sul paulistana, que mostrava muros altos, grades e sujeira, o palestrante deixou uma provocação para a plateia: “A escola é um convite. Vocês se sentem convidados? Todo os dias os meninos têm que atravessar o lixo no portão da escola para entrar. Depois ele bagunça na aula e questiona: mas vocês me tratam como lixo, como eu vou me tratar diferente?”.
“Tive apoio das merendeiras e das faxineiras. Professores foram poucos. E da diretoria, suspensão”, contou Thiago Vinicius
Thiago também dividiu que nas relações de ensino-aprendizagem que estabeleceu durante seu período escolar, o “baixo clero” foi quem realmente fez a diferença, ressaltando que toda a comunidade escolar participa da educação dos alunos, não só os professores.
“Desde os 15 comecei a ter ideias para tirar minha comunidade das páginas policiais e ocupar as páginas culturais. [Para desenvolver meus projetos] tive apoio das merendeiras e das faxineiras. Professores foram poucos. E da diretoria, suspensão”, disse.
E se as escolas são compostas por diversas juventudes, o mesmo vale para os professores. Maíra Azevedo dividiu com a plateia do SIEI que parte das violências que sofreu partiram dos professores ou foram silenciadas por risadas deles. Embora muitos possam fazer parte da manutenção dos problemas na escola, Maíra defende que eles também são, sobretudo, vítimas destas mesmas questões.
“Falamos sobre transformar a escola para os jovens, mas não pensamos como transformar a vida dos professores. Tem mulher que é vítima de violência doméstica. Tem professor gay que é ridicularizado pelos colegas e alunos. Como o professor vai tornar a escola atrativa se ele está sendo massacrado, se está morrendo por dentro, e não é valorizado? Quando começarmos a cuidar dos nossos professores, vamos transformar a escola em um espaço agradável para todas as juventudes”, disse Maíra.