publicado dia 14/09/2017

“Nossa sociedade sofre de um Transtorno de Déficit de Brincar”

Reportagem:

O brincar livre das crianças tem diminuído exponencialmente no mundo todo desde 1955. Ao mesmo tempo, verifica-se o aumento de casos de transtorno de ansiedade, depressão e suicídio entre crianças e jovens. Para Peter Gray, psicólogo e pesquisador da Boston College, nos Estados Unidos, os fatos não estão apenas correlacionados, mas são causa e efeito.

“O brincar é o jeito da natureza de garantir que possamos aprender a desenvolver nossas capacidades para sobreviver”, diz Peter Gray

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“O brincar é o jeito da natureza de garantir que as crianças pratiquem as habilidades necessárias para a vida”, explica Gray, ressaltando que a psicologia evolutiva já conseguiu comprovar que as crianças são biologicamente desenhadas para brincar.

“Em nome da educação estamos tragicamente tirando das crianças o direito de aprender”, afirma o pesquisador, presente na 20ª Reunião Internacional da Associação Internacional do Brincar (IPA), que acontece até o dia 16 de setembro em Calgary, no Canadá.

Para o pesquisador, autor do livro Free to Learn (ainda sem tradução no Brasil), o brincar livre das crianças permite o exercício da imaginação, capacidade que coordena todas as outras habilidades relacionadas ao pensar. “O desenvolvimento integral, considerando o desenvolvimento intelectual, emocional, social e cultural das crianças, está direta e intrinsecamente relacionado à possibilidade delas brincarem livremente”, explica.

Por que as brincadeiras perdem espaço?

Segundo o professor, entre as principais razões para a diminuição do brincar livre das crianças estão a cultura do medo, com a proliferação constante de notícias sobre violência, abusos e perigos da sociedade, o peso desproporcional dado à escolarização, com excesso de lições de casa e diminuição dos tempos de intervalo não supervisionados, e a supervalorização da participação adulta no desenvolvimento das crianças.

Para o pesquisador, em nome da educação estamos ironicamente tirando das crianças o direito de aprender por meio do brincar

“O índice de depressão em crianças é de sete a dez vezes maior do que na década de 1960. Transtornos de ansiedade estão até oito vezes mais presentes e as taxas de suicídio em crianças de até 15 anos são quatro vezes maiores, sendo que na última década este número aumentou exponencialmente”, apresenta Gray.

Para ele, não é preciso muito esforço para correlacionar o aumento das doenças com a diminuição do brincar. “Ora, sem o brincar, o mundo é muito triste! Mas,  para quem não acredita, estudos longitudinais desenvolvidos em vários países estão mostrando essa relação causal”, complementa.

A jornalista viajou para a Reunião Internacional da IPA a convite do Project Dirt, por meio do Dia de Aprender Brincando, campanha global coordenada no Brasil pela Associação Cidade Escola Aprendiz.

Em especial, a cultura escolar atual, segundo Gray, é uma das grandes vilãs: testes, ranqueamentos e índices têm gerado uma ansiedade generalizada e apresentado a falsa ideia de que as crianças aprendem mais se há mais escolarização.

De acordo com o pesquisador, a escola precisa se reestruturar, a fim de garantir às crianças tempo, espaço e condições para que possam sozinhas socializar e aprender ao negociarem e se expressarem em suas brincadeiras.

Crise de criatividade

Outro dado alarmante são os estudos de investigação da capacidade criativa das pessoas. Globalmente, a criatividade ou o pensar criativo está diminuindo em todas as idades.

“E isso é muito grave quando olhamos para o mundo atual, em que cada vez mais nossos problemas são complexos e requerem soluções inovadoras. Ou seja, nossa sobrevivência e nossa capacidade de viver neste planeta depende do exercício criativo e este é essencialmente exercitado quando as crianças têm a possibilidade de brincar”, alerta.

Ao se dedicar há mais de 50 anos ao estudo das culturas infantis, Gray é categórico em seu diagnóstico: “a sociedade está sofrendo de um Transtorno de Déficit de Brincar, cuja resposta só requer uma terapia: restaurar às crianças o direito de brincar”.

As 4 características que definem o brincar

Segundo Peter Gray, o brincar é uma atividade com características bastante sistemáticas. Assim, só é considerado como tal se estes quatro elementos forem identificados:

1. Auto-escolhido e auto-dirigido

“O brincar é necessariamente uma atividade da criança, coordenada pela criança. Se há mediação ou direcionamento de um adulto, esta atividade, embora lúdica, não é brincar.”

2. Intrinsecamente mobilizado

“Brinca-se porque se quer. É brincando que as crianças descobrem seus interesses e suas paixões.”

3. Guiado por regras

“É brincando que as crianças aprendem a seguir regras. Mesmo quando brincando sozinhas, as crianças criam regras para determinar a brincadeira, inclusive, no faz de conta. É construindo os “não pode” e “pode” que as crianças negociam suas possibilidades e limites, testam suas fronteiras e aprendem a conviver no coletivo.”

4. Permeado pela imaginação

Mesmo quando jogando bola, as crianças imaginam o campo, a torcida, a si próprias como jogadoras. A fantasia, o faz de conta está presente como elemento intrínseco ao brincar – é o produto cultural da infância.

 

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