publicado dia 08/04/2021
Educação e um ano de pandemia: como escutar o que as crianças querem?
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 08/04/2021
Reportagem: Ingrid Matuoka
Se no ano passado um dos principais desafios foi reinventar o fazer pedagógico para o ensino remoto, o ano letivo de 2021 traz outro obstáculo: manter crianças e adolescentes engajados nas atividades e interessados em aprender. “Esse ano está mais difícil conseguir adesão dos estudantes, porque eles estão cansados, amuados. Eles estavam na expectativa de voltar para o presencial esse ano, e foi um baque isso não ter acontecido”, relata Kassiane dos Santos Oliveira, professora do Ensino Fundamental na Escola Municipal Milton Campos, em Belo Horizonte (MG).
Na tarefa de encontrar caminhos para manter o vínculo dos estudantes com a escola e as aprendizagens, as próprias crianças e adolescentes podem ajudar a apontar a direção. O primeiro passo nesse sentido é estar sempre atento ao que os estudantes já trazem de conhecimentos, o que aprenderam nesse último ano com as atividades escolares ou não, e pelo que eles têm se interessado. Com essas informações, fica mais acessível readequar as propostas para que elas mobilizem e engajem os alunos.
A professora Kassiane, por exemplo, percebeu que as crianças desejavam mais atividades de escrita, sobretudo com a letra cursiva, porque estavam animadas com o processo de alfabetização. “Ouvi-las me deu um indicativo do que eu poderia propor para uma próxima atividade. Então, fiz uma sequência de vídeos ensinando a letra cursiva e postei nos grupos de WhatsApp. Elas ficaram empolgadas, escreveram e tiraram fotos para me mostrar o resultado”.
Colocar os estudantes em seu lugar, o de protagonista, e os professores atuarem como mediadores do processo de ensino e aprendizagem, pode motivá-los, porque se tornam mais ativos. “Se dizemos que o estudante é dono de seu tempo e de sua aprendizagem, então precisamos ajudá-lo a encontrar suas estratégias e ferramentas de aprendizagem. Discutir isso com eles também impacta na motivação para que continuem estudando”, recomenda João Paulo Cêpa, consultor e especialista em currículo da Fundação Lemann.
Mas, às vezes, apesar de toda a criatividade e esforço dos professores, os entraves persistem e os estudantes continuam desanimados. Nesses casos, talvez a questão esteja além. “Tem muita coisa boa acontecendo, muitos professores se reinventando, mas precisamos estar atentos e respeitar o que as crianças estão vivendo e sentindo. Podem estar adoecendo, deprimidas, vivendo situações de vulnerabilidade e violência. E também podem estar precisando de outras atividades, de movimento do corpo, de vínculo com o outro”, afirma Adriana Friedmann, pedagoga especialista em escuta de crianças.
Adriana também é fundadora da plataforma A Vez e a Voz das Crianças, um coletivo de especialistas que se reuniram no final de 2020 para ouvir centenas de crianças, de todos os lugares do Brasil e de diferentes perfis socioeconômicos, sobre como tem sido a pandemia para elas.
A sistematização dos resultados ainda está em andamento, mas Adriana compartilhou as impressões iniciais do grupo, e que dão uma visão do que pode estar acontecendo no interior de muitos estudantes: “Todos falam da falta de vínculos, da saudade da família, dos amigos, da escola, apesar de gostarem de estar mais próximos de seus pais e mães. Apareceram também muitas fantasias sobre o coronavírus, como crianças que querem ser super-heróis que vão matar o vírus. Mas também apareceu muito medo e muitos temas sobre a morte”.
Além de poder, e dever, participar das decisões sobre as atividades pedagógicas da escola, os estudantes também têm o que dizer sobre as políticas públicas desenvolvidas para as infâncias e juventudes.
“As crianças, desde muito cedo, são capazes de construir interpretações sobre suas vivências e sobre a sociedade, e que precisamos ouvir. Elas estão sempre muito atentas, porque não vivem em um mundo à parte, elas vivem em interação com os adultos, recebendo informações de diferentes meios. Então elas são capazes de nos dar indicações sobre como a política pode atender melhor suas demandas, e sobre como a escola pode atender melhor tanto no período de isolamento quanto no retorno presencial”, reforça a professora Isabel de Oliveira e Silva, membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Educação Infantil (NEPEI) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
É direito fundamental das crianças e adolescentes participar da vida familiar, comunitária e política, como previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A especialista foi uma das coordenadoras da pesquisa “Infância em Tempos de Pandemia: Experiências de crianças de 8 a 12 anos em Belo Horizonte e região metropolitana”, que ouviu mais de 2,2 mil crianças, e deu origem a uma série de orientações ao poder público e às organizações da Sociedade Civil sobre a proteção social, a educação e o cuidado com as crianças.
Como exemplo, Isabel cita que muitas crianças estavam passando mais tempo em frente às telas e fazendo menos atividades físicas. “As políticas para infância e saúde precisam estar atentas a isso, e a própria escola precisa estar consciente e conversar com as crianças sobre o que pode ser feito para manter atividades saudáveis, inclusive porque muitas delas estão com horários de sono alterados e com altos níveis de ansiedade”, explica a professora.
Além de orientarem sobre a necessidade de ouvir as crianças e adolescentes durante a formulação de políticas públicas, o NEPEI também recomenda que políticas e ações destinadas aos estudantes considerem “suas identidades, seus contextos de vida familiar e comunitária e que sejam formuladas tendo em conta as diversas fragilidades e o precário acesso a bens materiais básicos de parcela expressiva da população infantil. […] Tais desafios exigem que políticas se estruturem de forma intersetorial por meio de ações integradas de promoção de direitos baseando-se nas informações e significados das experiências das crianças marcadas pelas desigualdades sociais, territoriais, raciais e de gênero”.
As especialistas ouvidas pelo Centro de Referências em Educação Integral fizeram algumas recomendações para apoiar os processos de escuta dos estudantes. Confira abaixo:
Sobre o que as crianças e adolescentes podem falar?
Essencialmente, sobre tudo que elas desejarem, mas em especial sobre como tem sido a pandemia para eles, o que tem vivido e sentido, sobre a infraestrutura e rotina que possuem agora, e sobre o que tem achado das atividades pedagógicas.
Isso permite que o professor reveja seu projeto pedagógico e ações didáticas para tornar a aprendizagem mais interessante e significativa, e para poder planejar as atividades de acordo com a realidade dos estudantes.
Quais as melhores estratégias de escuta para o período remoto?
“Garantir espaços de participação é reconhecer que as crianças são sujeitos históricos e de direitos” – Trecho da pesquisa “Infância em Tempos de Pandemia” (NEPEI).
Se há possibilidade de contato virtual, é possível propor um debate com grandes e pequenos grupos e até individualmente.
Se não há acesso virtual, é interessante escrever uma pequena carta aos estudantes pedindo a opinião deles sobre um tema, e explicando o motivo desse pedido. Peça que eles devolvam junto com as demais atividades impressas.
Como os estudantes se expressam?
É possível pedir que eles se manifestem sobre um determinado tema oferecendo diferentes possibilidades de expressão: a fala, um desenho, um texto, uma brincadeira, fotografias e o que mais a criatividade permitir e as crianças demandarem.
Também é interessante que os professores estejam atentos a outros sinais, como comportamentos, feições, humores e alterações na frequência de participação.
O que fazer com os resultados colhidos?
Não só é importante que os estudantes saibam qual é o objetivo da conversa, como também é essencial que após o processo de escuta, eles participem e tenham conhecimento dos resultados obtidos e de quais encaminhamentos serão tomados a seguir. Uma escuta que não é seguida por ações concretas, que tenham por base a demanda coletiva, só gera frustração e distanciamento entre escola e estudantes.
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“Precisamos escutar as crianças para recriar as relações entre escolas e comunidades”
O que é a #Reviravolta da Escola?
Realizado pelo Centro de Referências em Educação Integral, em parceria com diversas instituições, a campanha #Reviravolta da Escola articula ações que buscam discutir as aprendizagens vividas em 2020, assim como os caminhos possíveis para se recriar a escola necessária para o mundo pós-pandemia.
Leia os demais conteúdos no site especial da #Reviravolta da Escola.