publicado dia 12/07/2022

Competências socioemocionais não resolvem os conflitos na escola; entenda

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As formações em competências socioemocionais ganharam espaço na Educação brasileira nos últimos anos, sobretudo na volta presencial às escolas, como estratégia para lidar com a irrupção de conflitos excessivos no ambiente escolar. Essa saída, contudo, pode trazer mais prejuízos para professores e estudantes do que benefícios.

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“É uma maneira restrita de pensar que tende a produzir uma normalização dos comportamentos, em vez de valorizar diferentes maneiras de estar no mundo”, afirma Ana Laura Godinho Lima, professora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e autora do artigo Que fazer das emoções na escola?”.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a especialista explicou as raízes dos conflitos atuais nas escolas e por que enfrentá-los a partir de formações em competências socioemocionais não se sustenta e, na verdade, pode ser danosa, principalmente ao ignorar a garantia de condições para ensinar e aprender. 

A especialista também deu exemplos de como as escolas já fazem trabalhos interessantes para lidar com as emoções e os conflitos, algo fundamental para promover o desenvolvimento integral dos estudantes. Confira a conversa na íntegra: 

Centro de Referências em Educação Integral: Por todo o Brasil, professores relatam que, nesta volta presencial às escolas, a ressocialização dos estudantes é um dos principais desafios. Os educadores notam conflitos excessivos e violências que se estendem do convívio entre as crianças e adolescentes à relação com os professores e consigo mesmo: não são raros os casos de automutilação e tentativas de suicídio. Quais fatores você observa que contribuem atualmente para este cenário?

Ana Laura Godinho Lima: Há uma série de fatores distintos que precisam ser considerados. A pandemia produziu imensas perdas, das quais as crianças e os adolescentes não foram poupados: milhares de vidas foram perdidas; os estudantes se viram repentinamente impedidos de ir à escola; muitos perderam parentes; muitos perderam sua fonte de subsistência; adolescentes precisaram renunciar aos estudos para trabalhar. 

A pandemia produziu ainda uma forte ruptura na vida dos estudantes, com efeitos distintos a depender da idade. Para os adolescentes, criou um sentimento de insegurança em relação ao futuro, inclusive dúvidas quanto ao valor e ao sentido dos estudos para sua vida. 

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Para Ana Laura, tais formações tratam as disposições emocionais e sociais como competências a serem treinadas, reduzindo a gama diversificada da experiência humana.

Crédito: iStockphoto

Penso que seria preciso considerar ainda o aumento da exposição das crianças e dos jovens a todo tipo de conteúdo veiculado na internet, especialmente às redes sociais, aos vídeos, aos games -, na medida em que isso se tornou, para aqueles que têm acesso fácil à rede, a opção de entretenimento mais ao seu alcance. 

A combinação dessas perdas, dessa ruptura na vida escolar, do afastamento de amigos e professores e o aumento da exposição à internet, na maioria dos casos sem a mediação dos responsáveis, produz agora uma necessidade de readaptação às relações presenciais com os colegas e os professores.

Essa readaptação depende de ensino e de aprendizado, portanto de tempo, atenção paciência, cuidado. É algo que precisa ser intencionalmente planejado, mas também vai exigir de todos flexibilidade, abertura para adaptar atividades e conteúdos em vista das possibilidades que se apresentam, sem um sentido de urgência.

CR: Para lidar com essas questões que tanto angustiam os professores e a gestão escolar, formações em competências socioemocionais têm ganhado espaço. Nas suas pesquisas, o que você encontrou sobre a efetividade desse trabalho?

ALGL: Em primeiro lugar é preciso admitir que os programas de formação em competências socioemocionais são objeto de controvérsia no campo educacional. Apesar dos investimentos que vêm sendo feitos nesses programas em diferentes países e diferentes regiões do país, não se chegou a demonstrar os seus resultados positivos de maneira consistente. 

Na minha percepção, a razão para isso se deve à própria concepção das disposições emocionais e sociais das pessoas como competências a serem treinadas, em vez de aspectos da condição humana relacionados às circunstâncias da vida, que precisam ser aceitos e compreendidos antes de poderem ser transformados. Isso significa que a própria concepção de “competências socioemocionais” precisaria ser objeto de reflexão. 

Além disso, há ainda o caráter simplificado e padronizado desses programas, que tendem a desconsiderar as condições vividas em cada escola e a impor um ritmo de trabalho com o objetivo de produzir resultados no tempo previsto. 

A meu ver, o que esses programas tendem a produzir é, no máximo, um conjunto de respostas estereotipadas a avaliações padronizadas, as quais se destinam apenas a comprovar a sua suposta eficácia, sem produzir efeitos significativos para os envolvidos.

CR: Quais concepções de desenvolvimento humano e Educação as competências socioemocionais revelam quando analisadas mais profundamente? É possível estabelecer um paralelo com a padronização e segmentação da construção de conhecimentos que por vezes as escolas promovem?

ALGL: As propostas de desenvolvimento das competências socioemocionais parecem orientar-se pelo objetivo de promover a adaptação das crianças e dos adolescentes ao que se supõe serem as demandas da sociedade contemporânea, em particular às exigências do mundo do trabalho. 

Assim, as competências socioemocionais são consideradas como pré-requisitos para os estudantes se tornarem pessoas bem ajustadas e profissionais de sucesso, daí a necessidade de desenvolvê-las na escola. 

Pensadas dessa maneira, as competências socioemocionais apresentam-se como um conjunto de comportamentos que podem ser produzidos mediante um certo tipo de treinamento, do tipo que se procura favorecer quando se pretende orientar uma pessoa a ser bem-sucedida em uma entrevista de emprego. 

Pode-se pensar em estabelecer um paralelo com a educação escolar quando essa se restringe a treinar estudantes para obterem bons resultados em avaliações seriadas e concursos, como o vestibular. 

Tanto num caso como no outro, o objetivo se torna o desempenho e não o enriquecimento da personalidade por meio do estabelecimento de relações férteis com a cultura, com os outros e consigo mesmo, que é o propósito fundamental da escola.

CR: Quais são alguns riscos para os estudantes que programas para o desenvolvimento das competências socioemocionais na escola podem apresentar?

ALGL: Os riscos mais evidentes são dois. Em primeiro lugar a hierarquização dos estudantes a partir do critério das competências socioemocionais, com a consequente estigmatização daqueles/as cujas características se afastam das competências valorizadas, as quais, diga-se de passagem, são bastante restritas, pois reduzem-se às chamadas Big Five: extroversão, estabilidade emocional, amabilidade, conscienciosidade e abertura a experiências.

“Um estudante mais introvertido ou mais focado no desenvolvimento de uma habilidade específica, como o desenho ou a música, pode vir a ser considerado como um problema”, pontua Ana Laura.

Isso significa que um estudante mais introvertido ou mais focado no desenvolvimento de uma habilidade específica, como o desenho ou a música, pode vir a ser considerado como um problema na escola, alguém que deveria ser corrigido ou tratado para se tornar mais extrovertido ou mais aberto a novas experiências.

É uma maneira restrita de pensar que tende a produzir uma normalização dos comportamentos, em vez de valorizar diferentes maneiras de estar no mundo. Outro risco é o de se considerar que uma escola que apresenta um programa de desenvolvimento de competências socioemocionais está cuidando do bem-estar emocional dos estudantes, quando em muitos casos está apenas realizando um treinamento para produzir comportamentos superficiais. Quero dizer que uma escola pode adotar um programa como esse e estar mesmo assim negligenciando a formação socioemocional de seus estudantes.

CR: Pode haver prejuízos também para professores e professoras?

ALGL: Pode, e os prejuízos para os professores redundam em mais prejuízo para os estudantes. Programas pré-formatados de desenvolvimento de competências socioemocionais na escola tendem a pressupor que os professores não estão preparados para lidar com a expressão das emoções na escola, apenas porque não conhecem o vocabulário e os procedimentos específicos propostos nesses programas. 

Em vez de se interessar pelo que os professores pensam, sabem e fazem, tendem a esperar que os professores assimilem esse vocabulário e esses procedimentos de maneira passiva e acrítica. Assim, costumam produzir confusão, na medida em que os professores passam a duvidar de si mesmos, de suas percepções, de seus conhecimentos e práticas, ou então produzem resistência, e nesses casos os professores são prontamente estigmatizados por sua “falta de abertura” ao novo. 

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“O que esses programas tendem a produzir é, no máximo, um conjunto de respostas estereotipadas a avaliações padronizadas, as quais se destinam apenas a comprovar a sua suposta eficácia, sem produzir efeitos significativos para os envolvidos”, afirma Ana Laura.

Crédito: iStockphoto

Em suma, esses programas se tornam armadilhas para os professores, ocupam seu tempo e suas preocupações, um tempo que poderia ser melhor aproveitado se fosse dedicado pela equipe pedagógica a uma reflexão mais aprofundada sobre o modo como se manifestam as emoções em sala de aula, seus efeitos e o modo de aproveitar as expressões emotivas na formação das crianças e dos adolescentes, de ajudar os estudantes a resolver os seus conflitos dentro e fora da escola.

CR: Os aspectos emocionais dos estudantes devem fazer parte do trabalho da escola, uma vez que promover o desenvolvimento integral demanda que todas as dimensões dos sujeitos sejam contempladas e consideradas. Nesse sentido, o que pode ser feito, e o que muitas escolas já fazem, no lugar do trabalho com competências socioemocionais e que se mostra efetivo?

ALGL: Sem dúvida a dimensão emocional deve fazer parte do trabalho da escola, na medida em que é parte constitutiva de nossa humanidade. Como evidencia o título de um livro recente de António Damásio, sentir e saber são indissociáveis

O que pode e deve ser feito, e aliás já é feito nas escolas, consiste em uma grande variedade de intervenções realizadas pelos professores, por exemplo quando fazem rodas de conversa para resolver conflitos latentes entre as crianças ou para acalmar a ansiedade em relação a uma avaliação e até mesmo para diminuir a excitação excessiva diante de uma ocasião especial, como uma festa ou uma excursão, as quais, para serem bem aproveitadas dependem de um certo autocontrole das próprias emoções. 

E ainda quando, diante de um conflito entre estudantes, a professora chama as crianças envolvidas para conversar, para explicarem o que aconteceu, para ouvirem uma à outra, para cuidarem juntos da criança que acabou machucada; quando, diante de uma ofensa, a professora, em vez de deixar passar como se fosse brincadeira, chama atenção para os efeitos da ofensa nos sentimentos do outro; quando, diante da dificuldade de uma criança se expressar no grupo, a professora procura encorajá-la em uma situação em que sabe que ela tem a resposta certa etc. 

Seria possível continuar indefinidamente a lista de exemplos, já que lidar com as questões socioemocionais na escola é parte indissociável do ensino dos conteúdos. É claro que esse trabalho de todos os dias poderia ser aperfeiçoado, tornando-se objeto de atenção e diálogo entre os educadores. Pode-se aprender e aperfeiçoar-se na arte de lidar com as emoções, inclusive as próprias, quando se pode dialogar sobre elas, trocar experiências, pensar juntos, encontrar apoio e compreensão dos pares.

CR: Como a saúde mental e o bem-estar se relacionam com a oferta de condições para ensinar e aprender na escola e a garantia de direitos dentro e fora dos muros escolares?

ALGL: Parece-me evidente que contar com boas condições de trabalho e remuneração em um ambiente adequado, em que haja tempo suficiente e abertura para que os professores desenvolvam coletivamente um trabalho autoral, criativo; em que a equipe de professores conte com a confiança e o apoio da gestão para propor novas formas de organizar o trabalho, em vista das possibilidades e das necessidades que encontram na própria escola, tudo isso promove o bem-estar e a saúde mental dos professores, dos estudantes e de todos aqueles que trabalham na escola. 

Professores que se sentem respeitados, que têm autonomia e encontram apoio para realizar o seu trabalho, tendem a se responsabilizar pelas suas decisões e estão em melhores condições de ensinar aos seus alunos sobre respeito, responsabilidade, autonomia, confiança em si próprios e disponibilidade para a colaboração com os pares. 

Finalmente, tenho a convicção de que uma criança que aprendeu a ser respeitada na escola, aprendeu a respeitar os outros e a esperar respeito dos outros, o que quer dizer que está menos vulnerável a aceitar se envolver em situações injustas, seja cometendo, seja sofrendo injustiças, como ser explorada no mercado de trabalho.

Projetos oferecem apoio emocional e escuta a educadores e estudantes

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