Por meio das Artes, professora aborda questões raciais e de gênero na Educação Infantil

Publicado dia 28/01/2021

Durante as brincadeiras e atividades com sua turma de Educação Infantil, na Escola Municipal do Loteamento Santa Júlia, em Lauro de Freitas (BA), a professora Carla Pinheiro começou a notar alguns comportamentos e comentários das crianças que refletiam problemas da nossa sociedade. O cenário se estendia desde meninos que se recusavam a pintar com um lápis rosa, porque “é coisa de menina”, até uma criança que chorou ao ser identificada por seus pares como negra. “Consegue imaginar as experiências que uma criança de 4 anos teve para fazer com que ela não quisesse pertencer a esse grupo?”, questiona a educadora.

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A inquietação tomou conta, e Carla decidiu criar um projeto para abordar com os pequenos, de forma lúdica e por meio de diferentes linguagens, questões relacionadas a marcadores sociais da diferença, como raça e gênero. É assim que tem origem o projeto “Uhuru! Procura-se representação”, um dos vencedores da 21ª edição do Prêmio Arte na Escola Cidadã, realizado pelo Instituto Arte na Escola. 

“Planejei as atividades a partir das demandas da própria turma, visando ajudar as crianças a construírem uma autoimagem positiva e a poderem se preservar caso alguém venha a descredibilizá-las por questões éticas, morais ou estéticas. Isso facilita que elas valorizem e reconheçam sua importância nos grupos do qual fazem parte”, explica Carla.

O projeto, realizado entre agosto e novembro de 2018, foi batizado uhuru, que significa liberdade na língua Suaíli, um conceito que dialoga com a proposta pedagógica de Paulo Freire, a norteadora das atividades realizadas pela educadora. Já a segunda parte do nome do projeto veio da música Bonecas Pretas, de Larissa Luz, que diz: “Procuram-se bonecas pretas. Procura-se representação!”.

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A estudante Júlia da Silva, do Ensino Fundamental, compartilha com os colegas mais novos seu orgulho em ser negra

Crédito: Carla Pinheiro

Durante e após a realização das atividades, Carla notou, de fato, uma mudança na postura de sua turma. Elas estranhavam menos ao ver um homem vestindo uma peça rosa e não se opunham a pintar com o lápis dessa cor. Em uma conversa, ouviu de um dos pequenos que ele “ama ser preto”, além de ter recebido o endosso das famílias, que também perceberam uma diferença no posicionamento das crianças em relação aos temas.

“Educação serve para que as pessoas possam gerenciar suas próprias vidas, serve para formar as crianças para a cidadania, em prol de uma sociedade mais justa, democrática e solidária”, afirma a educadora.

Confira, abaixo, as quatro frentes de atuação do projeto “Uhuru! Procura-se representação”.

Procura-se representação na literatura

A contação de histórias costuma ser um dos momentos favoritos das crianças, e é uma oportunidade para trazer mais personagens não-brancos e expressões de outras culturas. 

Com a sua turma, a professora leu livros como Calu – Uma Menina Cheia de Histórias, por Cássia Vale e Luciana Palmeira, Que Cor É a Minha Cor?, por Martha Rodrigues, Meu Crespo é de Rainha, por bell hooks, e Bruna e a Galinha d’Angola, por Gercilga d’ Almeida.

Após a leitura, conversavam um pouco, fazendo costuras entre a história fictícia e suas próprias histórias de vida, ou iam criando produções artísticas, como uma galinha d’Angola de argila, enquanto comentavam o livro de Gercilga. 

“Um menino comentou que meu cabelo, que é crespo, era duro. Depois de ler o livro da bell hooks, eu levei uma rapadura para a sala, deixei as crianças tocarem no meu cabelo e, depois, compararem com a rapadura. E assim fomos conversando sobre essa questão”, relata Carla.

Procura-se representação nos brinquedos

Após conversar com algumas famílias sobre a questão da identidade racial, em conjunto tiveram a ideia de produzir com as crianças bonecos que as representassem. Para começar, a professora comprou tecidos que representavam diversas tonalidades de pele e os distribuiu pelo chão. Juntos, ouviram a música Pano Encantado, de Lu Chamusca, e a educadora anunciou: “Esse pano virou uma barco, uma ponte, uma flor. E agora ele vai virar um boneco, ele vai virar você”. 

Em seguida, as crianças foram convidadas a sentarem sobre o pedaço de pano que julgassem corresponder à cor de sua pele, e a professora anotou o nome de cada criança e a cor do tecido escolhida.

Em seguida, ouviram juntos a música Bonecas Pretas, de Larissa Luz, e com a ajuda de uma mulher da comunidade que sabia fazer bonecos de pano, se reuniram para produzir os moldes.

Na etapa seguinte, em diálogo com as famílias, a educadora pediu que perguntassem às crianças sobre qual cor tinham escolhido para representá-las como boneco. “Algumas crianças falaram para a família que tinham escolhido uma cor, mas na verdade tinham escolhido outra. Então eu pedia para a família conversar sobre essa identificação racial, o que significava isso para elas. A maioria acertou com a criança sobre essa escolha. E as que não acertaram, prestigiaram a escolha da criança”, relata Carla.

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Oficina de bonecos/as amparada por processo de autoidentificação racial pelas crianças.

Crédito: Carla Pinheiro

Depois, foi hora de criar os bonecos e brincar. “É preciso envolver as famílias e percorrer os trajetos de acordo com a linguagem infantil para dialogar sobre cor e raça, porque é um tema extremamente complexo”, aconselha a educadora.

Procura-se representação nas animações

Os desenhos e filmes animados são produções culturais que as crianças também costumam adorar, e facilita engajá-las nos debates a partir desse tema. Após assistirem a algumas animações que as crianças gostavam, começaram a conversar sobre o que é necessário para ser uma princesa. 

“Uma menina respondeu que era preciso casar com um príncipe. Então a partir disso fomos analisando juntos quais critérios eram esses, e se poderiam ser outros”, conta Carla.

Também assistiram juntos ao desenho “Nella, uma princesa corajosa”, que faz frente ao imaginário estereotipado de princesas, e fizeram autorretratos como princesas, seguido por uma conversa sobre o tema.

Procura-se representação na história e cultura geral

Um dia na sala dos professores, Carla comentava sobre a fala de um garoto sobre mulheres não poderem jogar futebol. O professor de educação física, Jaguaracy Conceição, que estava presente no momento, sugeriu: “eu posso ir, todo de rosa, conversar com as crianças sobre futebol”, e a educadora topou.

“Quando Jaguaracy chegou na sala, de camisa e calça rosa, vasilha de água rosa, não se faz necessário salientar a reação dos meninos. E ele conversou com a turma, falou sobre homem usar rosa, menina jogar futebol, e dialogamos sobre esses estereótipos”, conta Carla. Além da conversa, o professor Jaguaracy também leu o livro Os Cabelos de Sara, de autoria de Gisele Gama de Andrade, para as crianças.

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Interação com criança do grupo artístico-cultural Baiana de Cortejo de Lauro de Freitas.

Crédito: Carla Pinheiro

A professora também convidou artistas da comunidade para incentivar a valorização da cultura afro-brasileira. Reilane Cristina Trindade, de 12 anos, é dançarina do bloco afro Bankoma e fez uma apresentação de hip hop. Em seguida, conversou com as crianças. Júlia da Silva, uma estudante do Ensino Fundamental da mesma escola, conversou com a turma sobre o prazer e o orgulho em ser negra. E o grupo artístico-cultural Baiana de Cortejo de Lauro de Freitas, que tem mais de 35 anos de atuação, também fizeram uma performance e promoveram um debate com as crianças.

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