publicado dia 14/06/2023
Letramento racial é chave para transformar sujeitos, escolas e territórios
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 14/06/2023
Reportagem: Ingrid Matuoka
Em sua atuação à frente do CIEJA Perus, em São Paulo (SP), Franciele Busico logo percebeu que toda discussão com a equipe – currículo, avaliação, práticas pedagógicas – era atravessada pela questão racial. “O racismo é estruturante, então aprofundar qualquer reflexão sobre os fazeres pedagógicos demanda letramento racial“, diz.
Leia + Pesquisa mapeia desafios e transformações de escolas e redes durante a pandemia
O conceito, que diz respeito a desconstruir formas de pensar e agir que foram naturalizadas entre brancos e não-brancos, é um dos eixos dos materiais produzidos na pesquisa “Territórios Educativos e Educação Integral em contexto de crise: caminhos para a transformação de redes e escolas brasileiras”, que acabou de realizar um primeiro movimento de cocriação de caminhos por uma transformação sistêmica, do qual Franciele fez parte.
O “Territórios Educativos e Educação Integral em contexto de crise” é uma iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz com apoio da Imaginable Futures. Entre seus objetivos, consta desenvolver pesquisas e referências para escolas e redes, bem como reunir profissionais de destaque das áreas envolvidas para validação e fortalecimento das propostas elaboradas e dialogar com profissionais da Educação para qualificar as referências criadas pelo projeto e criar redes solidárias para sua implementação.
A produção de materiais de “Letramento Racial e de Gênero” por parte desta pesquisa-ação visa estimular movimentos de diagnóstico, formação e construção de caminhos para o enfrentamento de práticas discriminatórias de raça e gênero nos territórios. Também estão em andamento outros eixos, transversais e complementares a este primeiro, como a promoção da gestão democrática e a articulação em rede.
O diagnóstico, a construção de saídas de enfrentamento às práticas racistas e discriminatórias e o seu monitoramento precisa ser feito pelos próprios sujeitos envolvidos, contextualizados em um determinado território, para que ela efetivamente faça sentido e promova direitos.
“Temos que lembrar que estamos lidando com a tentativa de desmantelamento de uma estrutura racista que se impõe ao longo de 520 anos”, destaca Gina Vieira, formadora de professores da educação básica do Distrito Federal que também fez parte do movimento de co-criação da pesquisa-ação.
Por isso, a pesquisa-ação conta com uma equipe multidisciplinar e de diferentes lugares do Brasil. “É um trabalho que precisa ser feito no coletivo e na diversidade”, afirma Franciele.
Outro ponto central de propostas que cheguem às escolas e redes é reconhecer os professores como produtores de conhecimento. “O material valoriza a autonomia da escola e a identidade da comunidade e do território. Vê esse professor como um intelectual transformador que, no seu coletivo, no seu território, na sua comunidade, vai poder pensar como ele modela o currículo para que ele se anuncie antirracista”, diz Gina.
A educadora reforça que esse tipo de formação não tem o objetivo de substituir políticas públicas, deve acontecer em horário remunerado, de forma coletiva, e depende de ações concretas para se desenvolver.
“O professor vai ter que conversar sobre esse material com seus pares, relacioná-lo com o território e compreender que se apropriar, estudar, não é a única condição para ser antirracista, porque isso depende de efetivamente assumir posturas antirracistas”, explica Gina.
Olegário Gurgel Ferreira Gomes é promotor de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte e atua junto a três redes educacionais municipais e uma estadual. Ele conta que, desde que integrou o movimento de cocriação da pesquisa, passou a fazer uma sondagem nas redes de educação sobre como vai o letramento racial e de gênero entre as equipes.
“Os profissionais da educação não estão acostumados a questionar seu próprio trabalho e a qualidade do ensino a partir dessa perspectiva e estou me colocando o desafio de começar a trabalhar esse tema com eles”, afirma Olegário.
“Qual o papel da gestão escolar na promoção da equidade racial e de gênero? Como elas são consideradas nas práticas curriculares? O que é fundamental no enfrentamento ao racismo e discriminação de gênero na escola? Como os estudantes são ouvidos?”, indaga Bergman de Paula Pereira, pesquisadora e formadora da Cidade Escola Aprendiz, a respeito de algumas das perguntas centrais que norteiam a pesquisa-ação.
Ela destaca que não se trata de olhar apenas para os desafios, mas também as várias potencialidades que as escolas, sujeitos e territórios já possuem. “Temos que ter a esperança, aquela colocada por Paulo Freire, do verbo esperançar, no sentido de mobilizar ação e engajamento para que o reconhecimento, a valorização dos saberes, histórias, identidades e memórias dos territórios e da população negra africana da diáspora seja transformador de um território, de uma escola, de uma rede. Mas que ele também seja mobilizador de nós, de si, em relação àquilo que o racismo coloca enquanto destituídor de nossas subjetividades”, defende Bergman.
Na prática, a educadora Helena Freire Weffort, que lidera a produção e implementação da pesquisa-ação, explica que o primeiro passo é um diagnóstico participativo, a partir do qual se promova a escuta e reconhecimento da manifestação do racismo e de discriminações de gênero na escola, território e em outras instituições.
Em seguida, ela destaca que é fundamental que a rede intersetorial mobilizada pense sobre este diagnóstico e defina os critérios para uma atuação comum, para então criar planos de ação que fomentem um processo de letramento racial e de gênero entre as equipes que lidam com as infâncias e adolescências.
Cada um desses pontos será reelaborado levando em conta as potências, desafios e a identidade de cada território em que a pesquisa-ação atuar.
“Entre as ações, é preciso pensar uma formação para que as professoras e funcionários construam protocolos para os casos de racismo ou de violências de gênero na escola, porque é fundamental, por exemplo, que a acolhida da vítima venha em primeiro lugar, para não aumentar as violências”, pontua Helena.