publicado dia 19/09/2022
Como Amílcar Cabral e Frantz Fanon inspiraram o pensamento de Paulo Freire
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 19/09/2022
Reportagem: Ingrid Matuoka
Paulo Freire (1921-1997) é original e inovador e sua obra é amplamente reconhecida pelo mundo. Seu livro “Pedagogia do Oprimido” é considerado uma referência global e o terceiro texto mais citado nas Ciências Humanas. A intelectual e ativista norte-americana bell hooks, inclusive, atribui à obra a fagulha inicial de sua longa e frutífera carreira, como conta em “Ensinando a Transgredir”. Mas, como todos os grandes pensadores e pensadoras, o Patrono da Educação Brasileira não construiu suas teorias e práticas sozinho. Entre os que sustentam os pilares da obra freiriana, os pensadores Amílcar Cabral e Frantz Fanon ocupam um lugar central.
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“É difícil classificar Paulo Freire em uma corrente teórica porque ele usa muitas referências, quase sempre buscando a teoria para explicar a prática. Amílcar Cabral e Frantz Fanon, por exemplo, ofereceram a ele um método de interpretação da realidade para compreender a questão do colonialismo e o pensamento anticolonial”, explica Sérgio Haddad, doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), um dos fundadores da Ação Educativa e autor da obra O Educador: um perfil de Paulo Freire.
Amílcar Cabral (1924-1973) nasceu em Guiné-Bissau, uma das colônias africanas de Portugal, e foi o líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Para ele, a libertação das colônias dependia mais da educação e de uma revolução cultural do que de uma luta armada, porque pouco adiantaria uma independência política se a cultura do dominador continuasse a ser reproduzida e admirada no lugar da valorização da cultura própria.
“Toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos”, diz Cabral em “Unidade e Luta, a Arma da Teoria” (1978).
Poucos meses antes da libertação pela qual dedicou sua vida, Cabral foi assassinado por fascistas portugueses. Pela importância que Cabral dava à Educação e à formação humana, a Comissão de Educação da Guiné-Bissau recém-libertada decidiu convidar especialistas em abordagens decoloniais da Educação – entre eles, Paulo Freire – para desenvolver seu sistema educacional.
Você sabe a diferença entre descolonial e decolonial? O primeiro termo refere-se à libertação de nações que ainda estão sob domínio de outras, enquanto o segundo diz respeito aos países que já foram colônia um dia, mas não são mais, como é o caso do Brasil.
A missão do educador brasileiro era ajudar a criar um novo currículo que re-africanizasse a população. Uma escola com sentido para aquelas pessoas e que valorizasse a identidade local, retomando sua história, cultura e línguas, a partir do ponto de vista próprio, não mais do colonizador. Para Freire, isso tornaria as pessoas mais críticas e protagonistas, algo crucial após serem sujeitadas à passividade e subjugação de uma doutrinação colonial.
No Brasil, as pesquisadoras Ana Paula Cavalcanti e Slaine Senra Mattos do Amaral se debruçaram sobre a interlocução entre Freire e Cabral, que nunca chegaram a se conhecer pessoalmente. Freire entrevistou várias pessoas próximas a Cabral para compreender melhor seu pensamento e expressou em todas essas conversas enorme pesar por não tê-lo conhecido em vida. A análise dessas entrevistas, feita pelas pesquisadoras, foi publicada no artigo A prática educativa de Amílcar Cabral no processo de descolonização: diálogos de Freire em África, na Revista de Educação Popular (2021).
“Freire chamava Cabral de Pedagogo da Revolução por ele ter começado a revolução por meio da pedagogia, ao montar centros de estudos e crer que a cultura, enquanto um ato político, liberta”, conta Slaine.
Vale a pena ouvir! As pesquisadoras Ana Paula Cavalcanti e Slaine Senra Mattos do Amaral produzem um podcast dedicado a explorar a vida e obra de Paulo Freire.
Durante seu trabalho em Guiné-Bissau, Freire personalizou todo o processo de alfabetização ao contexto sociocultural do país, inclusive linguístico, e trazia não apenas conteúdos técnicos e científicos, mas também debates e reflexões sobre a sociopolítica do país.
“Freire insistia que as línguas nativas eram as que representavam ideologicamente ou simbolicamente as culturas daqueles países, o que contribuiria para a valorização da cultura que foi oprimida e para a construção de um pensamento próprio das comunidades negras”, afirma Sérgio.
A influência do revolucionário africano também é bastante evidente em obras de Paulo Freire como “Pedagogia da Esperança”, “Pedagogia da Tolerância”, “África Ensinando a Gente” e “Cartas a Guiné-Bissau”, e no pensamento comum a ambos de que “ninguém liberta ninguém”.
“Cabral se utilizou do conhecimento científico do colonizador – formou-se em engenharia em Lisboa – e voltou para a colônia a fim de lutar pela libertação de seu povo. Ele chamou a isso de suicídio de classe, algo que também aparece em Frantz Fanon quando ele fala sobre a inveja do colonizador, e que significa abrir mão de uma posição de intelectualidade supostamente superior para atuar em conjunto e a serviço do povo. Em Freire, é a noção de que o professor não está acima dos estudantes e que tanto a educação quanto a libertação acontecem em comunhão”, explica Ana Paula Cavalcanti.
Frantz Fanon (1925-1961), outra grande influência para Paulo Freire, foi um psiquiatra, filósofo e militante político da Frente de Libertação Nacional da Argélia, que analisou a colonização francesa em terras martinicanas, seu país de origem, a violência em processos de colonização e descolonização, bem como o lugar do negro frente aos brancos e aos embates coloniais.
Fanon foi pioneiro em analisar as deformações psicológicas que decorrem da opressão colonial. Durante a Guerra de Independência da França na Argélia, em que o filósofo teve um papel ativo, destacou a importância da “consciência de si” e de “seu lugar no mundo” para os argelinos.
Embora Freire também não o tenha conhecido pessoalmente, há estreito diálogo com suas produções, tanto que antes de publicar “Pedagogia do Oprimido”, lê “Os Condenados da Terra”, de Fanon, e decide revisar todo seu livro.
“Ambos estavam atentos aos impactos coloniais, que de acordo com Freire afetam a substantividade do ser humano. Ambos criaram condições para transformar a sociedade, cada um com uma estratégia, mas ambos por meio de uma transformação revolucionária”, pontua Vivian Valério Dias, pesquisadora e membro do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Sintetizando seu pensamento e a influência de Fanon, em “Pedagogia da Autonomia” Freire enuncia: “o meu ponto de vista é o dos “Condenados da Terra”, o dos excluídos […] A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres […]. A mim me dá pena e não raiva, quando vejo a arrogância com que a branquitude de sociedades em que se faz isso, em que se queimam igrejas de negros, se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia”.
A pedagogia de Paulo Freire nunca chegou a ser amplamente implementada no Brasil. Após a experiência do educador de alfabetizar jovens e adultos em menos de 40 horas, em Angicos (RN), Freire deixou o país em 1964 para fugir de perseguições do período de ditadura militar no país e só retornou em 1979. Até hoje, são algumas escolas, educadores e educadoras que seguem reverberando o pensamento freiriano em todas as suas práticas, e ainda há espaço para avançar em sua implementação efetiva nas redes escolares, sobretudo a perspectiva decolonial.
“São séculos de submissão a uma cultura branca, europeia, que tem um modo de pensar o currículo que acaba reproduzindo as relações entre as pessoas, também de gênero e de raça, até hoje. Um pensamento decolonial traz outra perspectiva, um outro lugar de fala em que os ancestrais, sua cultura e seus símbolos, são trazidos à tona e valorizados”, diz Sérgio.
Retomando Darcy Ribeiro, antropólogo, sociólogo e ex-ministro da Educação do Brasil, Ana Paula destaca que uma educação libertadora não interessa à elite brasileira, composta majoritariamente por descendentes de colonizadores que atualizam os mecanismos da colonialidade para o presente, mantendo-se em espaços de privilégio.
“Ainda prevalece no Brasil uma mentalidade altamente colonizada, presa ao desejo de servir e de ter o que o colonizador tem, porque seria supostamente melhor do que o que há no Brasil. Essa postura se estende da Europa aos Estados Unidos, reproduzindo a cultura, o mito da meritocracia e amor pelo opressor, que nesse caso não aparece na figura do colonizador, mas do empresário. Precisamos de uma educação libertadora não só por essas questões, mas porque quando uma educação não é libertadora, o desejo do oprimido é se tornar opressor”, sintetiza Ana Paula citando Paulo Freire.
Os outros professores e professoras de Paulo Freire, por seu biógrafo Sérgio Haddad:
“Freire diz que seus primeiros educadores foram seu pai e sua mãe, porque aprendeu muito com eles, debaixo de uma mangueira, escrevendo com gravetos na terra. Também cita sempre as professoras do ensino primário Eunice, Áurea e Cecília, de quem fala com muito carinho.
Quando começa a trabalhar no SESI como professor de Língua Portuguesa, participa do Instituto Superior de Estudos Brasileiros e conhece o pensamento de Guerreiro Ramos, Álvaro Pinheiro Pinto e Rolando Corbusier. Para discutir democracia e consciência crítica, recorre a Zevedei Barbu e Karl Mannheim.
Quando vai para o exílio no Chile, convive com pessoas de formação marxista, fundamentais para “Educação como Prática da Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, e estuda Hegel, Marx, Lenin, Engels, Sartre, Eric Fromm, citando ainda Che Guevara, Fidel Castro e Camilo Torres.
Já nos EUA, aprende mais sobre intelectuais que tratam da questão da relação racial, como o Amílcar Cabral e Frantz Fanon, e na Suíça estuda educação e trabalho e recorre a intelectuais orgânicos como Antonio Gramsci.
No livro de Nita Freire, “Uma História de Vida”, ela faz um levantamento de todos os autores que Paulo cita em seus trabalhos e é realmente uma infinidade”.
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