publicado dia 11/05/2021

“Precisamos de uma cultura coletiva que tenha no horizonte a internet como um direito”

Reportagem:

Selo Reviravolta da EscolaImagine um homem de 35 anos que tem três filhos estudando virtualmente durante a pandemia, cada um com seu próprio computador e acesso à internet de qualidade. Provavelmente o primeiro retrato que passou pela sua cabeça não foi de uma família quilombola ou de alguma região periférica, não é mesmo? Esse exercício, proposto por Paulo Victor Melo, pesquisador e doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do coletivo Intervozes, que trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil, tem o objetivo de ilustrar como o acesso à internet no Brasil é atravessado por desigualdades raciais e sociais.

Leia + UNICEF alerta para importância do PL que garante acesso à internet a alunos e professores

“Ter acesso à internet de qualidade e à infraestrutura tecnológica sempre foi visto como um luxo, um serviço privado caro. Ninguém consegue imaginar que essa realidade possa ser de um quilombola, ainda que os três filhos desse homem também precisem estudar. Se não é possível imaginar diferente, é porque a concepção sobre esse acesso é um marcador de desigualdade”, diz Paulo.

No Brasil, a Pesquisa TIC Domicílios de 2019 trouxe pela primeira vez dados sobre cor e raça e mostrou que enquanto 80% dos brasileiros já têm algum contato com a internet, menos da metade da população indígena e 55% das pessoas pretas já utilizaram algum computador pelo menos uma vez na vida. Das classes D e E, 33% das pessoas já utilizaram computador, notebook ou tablet. Na classe A o índice é de 93%. 

O mesmo levantamento mostra as condições em que os estudantes entraram na pandemia: 4,3 milhões de alunos não utilizavam a internet no final de 2019 e 95,9% deles estavam matriculados na rede pública de ensino. Na rede privada, apenas 174 mil alunos não tinham conexão. Durante a pandemia, quando o acesso à internet se fez ainda mais necessário, aprofundaram-se as desigualdades, sobretudo entre os estudantes que puderam ou não ter contato com os meios digitais. 

A “Pesquisa Undime sobre Volta às Aulas 2021”, que ouviu 2/3 das redes de ensino municipais do Brasil, constatou que o acesso à internet e infraestrutura foram, de fato, as maiores dificuldades que as redes de ensino encontraram durante a pandemia para realizar o ensino remoto emergencial. 

Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista com Paulo Victor Melo, que explicou como o Brasil enfrentou a falta de acesso à internet durante a pandemia e por que motivo ele precisa ser consolidado enquanto um direito.

Centro de Referências em Educação Integral: A falta de acesso à internet no Brasil é anterior à pandemia, mas se tornou um problema ainda mais grave ao longo de 2020, um cenário que já está posto há mais de um ano. Como o Brasil avançou de lá para cá nesse ponto?

Paulo Victor Melo: Não avançou. A pandemia não deixou dúvidas sobre o caráter estratégico da internet, seja para acesso ou procura por trabalho, para o processo educacional e lazer e entretenimento. Contudo, o Governo Federal vetou o Projeto de Lei (PL) 3477/20, que garantiria acesso à internet para estudantes e professores da escola pública e inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico)

Esse veto não foi o primeiro. No ano passado, o presidente determinou 22 vetos ao PL 1142/20, que dispõe sobre medidas de enfrentamento o Covid-19 em comunidades quilombolas, indígenas e tradicionais, e previa internet nesses locais. Em dezembro de 2020, o Bolsonaro também vetou a universalização de internet em escolas públicas até 2024, prevista pelo PL 14.109/20. Depois o Congresso derrubou o veto, mas fica expresso o cenário de políticas públicas para reforçar desigualdades.

Trata-se de um tipo de projeto político para o país, que não se sustenta se construir um país mais equânime. O governo só consegue sobreviver reforçando a lógica de desigualdade e o acesso à internet é parte disso. Se cruzarmos os dados sobre pessoas que estão em situação de insegurança alimentar, fome, na pobreza extrema, são as mesmas que têm também as maiores dificuldades de conectividade. 

O pouco debate público sobre essas decisões, as reações tímidas a respeito disso, expressam uma dificuldade de compreensão sobre o papel fundamental do acesso à internet. Isso é parte de uma questão maior e anterior, que é a dificuldade da maioria da população brasileira de compreender comunicação para além de um serviço, mas como um direito.

CR: O que significa compreender a comunicação e o acesso à internet como um direito?

PVM: Primeiro é preciso entender que as desigualdades de acesso à internet refletem as desigualdades raciais, territoriais, de gênero e socioeconômicas que caracterizam nosso país, como mostram os dados da TIC Domicílios 2019.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) da Organização das Nações Unidas (ONU) também tem um levantamento que mostra que quanto menor a faixa de renda, maior o gasto com o acesso à internet de pior qualidade em relação às famílias mais ricas. As famílias mais vulneráveis utilizam de 12 a 14% dos seus rendimentos para pagar banda larga fixa e móvel, quando o limite deveria ser de 2%. Acima disso, o acesso à internet deixa de ser acessível.

Além de ser inacessível financeiramente, em muitos territórios as operadoras privadas não querem chegar para oferecer internet. São elas que decidem isso, com base no lucro que o local pode ou não gerar. Esse é o principal exemplo de que ainda estamos longe de pensar a internet como um direito. 

No Brasil, o acesso à internet foi forjado em desigualdades. Ter acesso à internet de qualidade e à infraestrutura tecnológica sempre foi visto como um luxo, um serviço privado caro. Ninguém consegue imaginar que essa realidade possa ser de um quilombola, ainda que os três filhos desse homem também precisem estudar. Se não é possível imaginar diferente, é porque a concepção sobre esse acesso é um marcador de desigualdade.

No contexto da pandemia, se a criança e adolescente têm direito à educação, e agora ela se materializa pelo acesso à internet, é papel do Estado garantir o acesso à internet. Se o trabalhador precisou sair do seu local de trabalho para continuar trabalhando em sua casa, além de despesas de eletricidade, equipamentos, condições de trabalho que impeçam doenças laborais, cabe ao poder público e às empresas privadas garantir que os servidores públicos e funcionários tenham tudo isso sem custo algum. 

Temos conversado com as famílias nos territórios e ouvido relatos de crianças que choram porque não têm aula remota, enquanto o colega consegue, de pessoas que perdem acesso quando chove, e todas elas colocando em suas costas um desalento, uma pouca crença de que isso vai ser possível mudar por meio de políticas públicas.

Precisamos enfrentar vetos presidenciais mas, além disso, conversar com as pessoas para que pensem a internet como uma possibilidade enquanto direito, para que elas possam criar essa expectativa, como foi o acesso à luz, por meio do Programa Luz Para Todos, que trouxe mudanças significativas. Precisamos de uma cultura coletiva que tenha no horizonte a internet como um direito, para que quando eu fechar os olhos, eu possa imaginar o homem quilombola com internet de qualidade e computadores.

CR: Diante desse cenário, o que precisa ser feito para garantir o acesso à internet enquanto um direito de todos e todas?

PVM: Em suma, é fundamental que o Estado adote políticas públicas para garantir o acesso à internet às populações mais vulnerabilizadas de forma gratuita. 

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) traz algumas medidas de como atingir isso. Eles apontam a possibilidade dos governos destinarem recursos para infraestrutura digital e conectividade especialmente onde há maior exclusão digital; financiamento para acesso de comunidades indígenas e negras; produção de dados e estatísticas sobre acesso à internet nos territórios; medidas para as operadoras dos serviços de telefonia e internet não suspenderem o serviço por atraso ou falta de pagamento, compreendendo que as famílias estão com maior dificuldade; suspensão temporária de impostos em internet e potencializar o uso de licenças para internet comunitária. 

O que é a #Reviravolta da Escola?

Realizado pelo Centro de Referências em Educação Integral, em parceria com diversas instituições, a campanha #Reviravolta da Escola articula ações que buscam discutir as aprendizagens vividas em 2020, assim como os caminhos possíveis para se recriar a escola necessária para o mundo pós-pandemia.

Leia os demais conteúdos no site especial da #Reviravolta da Escola.

Uso de recursos digitais por escolas requer cuidados e proteção de dados, afirmam especialistas

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.