publicado dia 04/11/2020
Os fatores que influenciam a reprovação no Ensino Médio e alguns caminhos para contorná-los
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 04/11/2020
Reportagem: Ingrid Matuoka
A reprovação no Ensino Médio tem íntima conexão com o aproveitamento escolar e as chances de evasão: refazer um ano nem sempre garante a aprendizagem e ainda aumenta o risco de abandono dos estudos. Olhar para a questão também é fundamental para mapear os fatores que influenciam esse fenômeno e fazer frente a discursos que responsabilizam os estudantes individualmente pela repetência.
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A pesquisadora e consultora em pesquisa educacional Vanessa Franceschini se debruçou sobre o tema e, em uma análise mais profunda sobre a reprovação, evidencia fatores associados a ela como a cor/raça e o gênero dos estudantes.
Ao acompanhar turmas do 2º ano do Ensino Médio de nove municípios, alguns de alta vulnerabilidade social, da região metropolitana de Belo Horizonte (MG), a pesquisadora deu origem ao artigo “A cor da reprovação: fatores associados à reprovação dos alunos do ensino médio”.
E apesar dos resultados encontrados por Vanessa não poderem ser generalizados para todo o Brasil, eles revelam pontos de atenção para outras redes e escolas de regiões metropolitanas similares.
“Fracassos acadêmicos no Ensino Médio certamente persistirão caso o Estado não dê a devida atenção e não forneça meios para que a escola consiga atenuar as desigualdades de origem como os ligados à raça/cor da pele e gênero, que tendem a ser fatores de risco.”, disse a pesquisadora em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral. Confira os principais trechos da conversa:
Vanessa Franceschini: A dinâmica do desempenho escolar se tornou um tema relevante para mim, e decidi olhar mais especificamente para a variável da reprovação. Acho importante destacar que os fatores de reprovação no Ensino Médio dependem de cada contexto, da metodologia de pesquisa, do modelo estatístico empregado, e a base de dados utilizada. Então, em outras regiões do Brasil e em outras redes escolares, o resultado pode ser diferente.
Nesse artigo, eu realizei a pesquisa em escolas da rede estadual de nove municípios da região metropolitana de BH, em Minas Gerais: a própria Belo Horizonte, Betim, Brumadinho, Contagem, Esmeraldas, Ibirité, Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves e Sarzedo. Eu avaliei raça/cor, condições socioeconômicas, história escolar e estilo de vida, deixando de fora as questões relacionadas à escola e à comunidade, que também são importantes e influenciam no desempenho escolar dos estudantes.
Outro ponto importante de salientar é que eu fiz essa pesquisa dentro das escolas, então é uma amostra seletiva, porque só de os jovens estarem em sala de aula já é uma seleção. Não olhei para os que faltaram, estavam trabalhando ou cuidando do irmão em casa, por exemplo. Então, se eu tivesse ido à casa desses alunos, o resultado também seria diferente. E tem esse viés de que são adolescentes privilegiados em relação aos demais, só por estarem dentro de uma escola.
VF: O primeiro deles é um diferencial importante segundo raça/cor e sexo. Os riscos de reprovação no 2º ano do EM foram maiores para aqueles que se autodeclararam como sendo da raça/cor parda [Pelo IBGE, pardos e pretos compõem os negros no Brasil], sendo a situação ainda pior para o sexo feminino comparada ao sexo masculino.
Sobre esse ponto, vale destacar que a raça ou a cor são um fator de risco, mas não é pelo fato de uma pessoa ser parda que ela vai reprovar. Não é isso, não é uma causa. É uma associação, um risco maior. E isso vem de uma questão histórica do nosso país, do processo de escravidão, de como foi feita a abolição da escravatura, da falta de condições de acesso ao trabalho e à educação para essas pessoas, que tem a ver com a questão socioeconômica atual, e ainda temos o alto grau de racismo no país. É todo um contexto que afeta a chance de reprovação.
“A raça ou a cor são um fator de risco, mas não é pelo fato de uma pessoa ser parda que ela vai reprovar. Não é isso, não é uma causa. É uma associação, um risco maior. E isso vem de uma questão histórica do nosso país”, diz Vanessa Franceschini.
Outra variável importante para ambos os sexos é a distorção idade/série. Quanto mais velho o aluno na série, maiores as chances de reprovação. Isso tem a ver com a carga emocional do ano anterior, e geralmente eles sofrem bullying, fazendo com que eles se retraiam, se tornem agressivos e até mesmo saiam da escola. Muitas vezes o professor não percebe que esse é um fator importante que está atrapalhando o desempenho do estudante. Além disso, ter sido reprovado no Ensino Fundamental, ter em seu histórico escolar essa marca, aumenta as chances de ser reprovado novamente.
Ter sofrido violência dentro da família é outro elemento que gera uma tendência de pior desempenho escolar em qualquer estudante. E nesse contexto específico, também apareceu ter mãe de religião protestante como fator de risco. Em outras populações isso às vezes aparece como um aspecto de diminuição das chances de reprovação. Mas essa questão pode não ser muito exata, porque o questionário foi auto aplicado e alguns alunos não sabiam exatamente como responder esse tópico. Sem falar que estamos falando da religião da mãe e não do(a) estudante. A influência da religião e dos fatores ligados à família são mais fortes nos anos iniciais e vão perdendo força nos finais.
O mesmo aconteceu com os pontos relacionados à renda e à escolaridade da mãe, que não apareceram como fator de risco. Como eu participei das pesquisas de campo, pude perceber que muitos estudantes também não sabiam essas informações.
VF: Para as meninas, aparece como fator de risco ter sofrido violência dentro da escola e da família. Além disso, a chance de reprovação foi maior para as que estavam grávidas ou já tinham filhos, do que as que não eram mães. Elas têm vergonha de chegar na sala de aula grávidas e quando têm essa criança, muitas escolas e famílias não dão o suporte necessário, várias delas sofrem bullying, e acabam reprovando e evadindo.
Essas adolescentes, quando residem com um pai e uma mãe no mesmo domicílio, tendem a ter um desempenho melhor. No caso das alunas que moravam somente com uma das figuras parentais, elas apresentam maiores chances de reprovar. Isso pode ter a ver com o fato de que costuma sobrar para as meninas as tarefas domésticas e de cuidado com os irmãos.
Em relação às meninas de raça/cor parda, elas apresentaram mais do que o dobro de chances de reprovação do que o verificado para as alunas de raça/cor branca. Além disso, ser reprovada no Ensino Fundamental e ter sofrido violência dentro da família e da escola potencializa o efeito da raça/cor sobre as chances de reprovação.
Já em relação aos meninos, na literatura, estudantes da cor negra (pretos e pardos) têm maiores chances de reprovação escolar. No estudo, considerando o escopo restrito e as questões que envolvem a autodeclaração, ser um menino de raça/cor preta não se apresentou como fator de risco para a reprovação. Contudo, ser pardo representou uma chance 66% maior de reprovação em relação ao resultado para alunos de cor branca.
Para os estudantes meninos, não aparece como risco o fato de eles serem pais. Não é um problema para eles como é para as meninas. Mas trabalhar ou já ter trabalhado é um fator. Nesses casos, o risco foi o dobro em relação às meninas, embora elas também tenham trabalho não-remunerado dentro de casa.
Em relação ao arranjo familiar, o pai participar da vida escolar dos meninos aumenta a chance de reprovação. Assim, é possível supor que é uma participação negativa. O uso de bebida alcoólica, ter mãe protestante, ter sido reprovado anteriormente e ter sofrido violência na família também aparecem como importantes causas de reprovação para os meninos.
VF: Fracassos acadêmicos no Ensino Médio certamente persistirão caso o Estado não dê a devida atenção e não forneça meios para que a escola consiga atenuar as desigualdades de origem como os ligados à raça/cor da pele e gênero, que tendem a ser fatores de risco.
Mas uma das estratégias são as cotas, que o Brasil adotou desde 2012, e que visam justamente amenizar as desigualdades educacionais. Das vagas ofertadas, 50% são destinadas aos alunos da escola pública, sendo 25% para os com renda per capta menor que um salário e meio e os outros 25% para os com renda per capta maior. Dentro de cada faixa de renda, em torno de 13% são para os com raça/cor preta, parda e indígenas. Mas é preciso criar estratégias dentro das universidades para garantir a permanência desses estudantes, para além do acesso. E as cotas são importantes, mas elas são destinadas somente aos alunos que chegam ao final do Ensino Médio. Então precisamos olhar para essa questão desde a Educação Infantil.
E pensando em coisas mais imediatas que podem ser feitas para contornar essa situação, há a necessidade de olhar para a infraestrutura dessas escolas. Mas ainda mais relevante do que isso é olhar para as relações que se estabelecem nesses espaços.
Quando fui a campo, visitei várias escolas e entrevistei os estudantes. A comunicação com a gestão, com os coordenadores, a forma como os professores conduzem as aulas e a relação com esses educadores apareceram como questões primordiais. Então, para cuidar disso, é preciso oferecer melhores condições de trabalho para esses profissionais e investir na formação continuada dos professores.
Também acho que pode ser interessante promover uma maior interação entre gestores de diferentes escolas e entre os próprios professores. Tem gestores que sabem muito bem como abordar um estudante agressivo e convidá-lo para o prazer de estudar. Tem professores que são muito amados e respeitados pelos alunos, então pode ter ali uma experiência para trocar com seus pares. Mas isso depende de apoio da gestão, de logística, tempo e verbas.
Nesse mesmo sentido, estabelecer parcerias entre universidades e escolas também pode ser proveitoso, trazendo estudantes de Pedagogia e de Licenciatura em Química e Física, por exemplo, para dentro das salas de aula, para que troquem informações e aprendizados com os docentes.
Outro ponto é aproximar a comunidade da escola, trazendo gente para falar sobre violência, gravidez, profissões, e outros temas das juventudes. É convidar pessoas negras, oriundas de escolas públicas, que estão tendo sucesso, ou alguém da comunidade que se destaca. Tudo isso motiva os adolescentes a continuarem estudando.