publicado dia 14/05/2020

“Não adiar o Enem deve acentuar as desigualdades no país”, afirma Iracema Nascimento

Reportagem:

As inscrições para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) começaram nesta segunda-feira 11/5. A prova deve ocorrer em novembro e não há previsão de ser adiada. Por meio de uma nota, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) afirmou que não concorda com a manutenção das datas das provas, posição apoiada também pela Une e Ubes, e acompanhada por diversos abaixo-assinados on-line pedindo o adiamento.

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Para Iracema Nascimento, professora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), manter a prova deve ampliar as desigualdades no país. Isso porque um terço dos candidatos não têm acesso à internet e a dispositivos, como computador ou celular, segundo uma pesquisa do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), e esses recursos vêm sendo amplamente utilizados pelas redes de educação durante a quarentena. “E mesmo os que têm acesso estão com a qualidade da educação prejudicada”, afirma a docente.

A evasão escolar no Ensino Médio: Na faixa etária de 6 a 14 anos, 99,3% das crianças estavam matriculadas na escola.Esse índice cai para 88,2% na faixa de 15 a 17. A taxa de evasão também é maior entre homens pretos ou pardos, que cresce de 6,1 para 8,4 em relação à cor ou raça, e de 7 para 8,1 em relação a gênero. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) 2019.

Ela explica que por tratar-se do Ensino Médio, etapa sensível da educação na qual poucos estudantes chegam ao 1º ano, muitos evadem, e raros são aqueles que concluem e tentam prestar o ENEM. E nisso há um recorte socioeconômico marcante: segundo dados do IBGE de 2019, os jovens mais pobres tinham abandonado a escola sem concluir o Ensino Médio oito vezes mais do que os jovens mais ricos. 

“Dentre as pessoas mais pobres que concluem o Ensino Médio, poucos almejam o Ensino Superior até por uma visão socialmente construída, de serem menos capazes, de que aquele não é o lugar para eles”, analisa a professora Iracema a respeito das desigualdades que atravessam a educação no Brasil.

Confira os principais trechos da entrevista: 

Centro de Referências em Educação Integral: Por que é preciso adiar o Enem?

Iracema Nascimento: De maneira geral, porque a pandemia colocou todos os aspectos da vida de todas as pessoas em suspensão e questionamento, as atividades cotidianas ficaram desajustadas. Agora não é hora de causar novas ansiedades. Precisamos cuidar das pessoas e preservar a vida. 

Mas também é preciso adiar o Enem porque o funcionamento do sistema de educação mudou com a pandemia. Portanto seria uma decorrência óbvia o adiamento da prova ou de qualquer outro tipo de exame, porque todos os aspectos mudaram. Manter certos eventos cria a ilusão de que é possível, de que essa pandemia não está atingindo as pessoas. 

Mesmo se no Brasil não houvesse desigualdade, o adiamento seria necessário. É também o que vários países têm feito. Mas aqui, onde as desigualdades socioeconômicas são históricas e estruturais e refletem na Educação, isso é ainda mais relevante. 

Temos uma parcela da população que não tem acesso à internet e a computadores, que não pode contar com o apoio de um adulto para incentivar, apoiar, cobrar a elaboração das tarefas e estruturar uma rotina de estudos com as crianças e adolescentes, e que não tem um ambiente com condições adequadas para estudar.

E mesmo os que têm acesso a tudo isso estão com a qualidade da educação prejudicada, porque o ato educativo se dá pela interação entre sujeitos, mediada pelo ambiente e pelos materiais utilizados. Então a educação é esse processo interacional. Quando se retira a interação da educação, está se retirando uma parte essencial do ato educativo. Então não dá para afirmar que as atividades remotas, que estão sendo desenvolvidas por redes privadas e públicas, substituem integralmente o processo educacional. 

Os cursos preparatório para o Enem, sobretudo os populares, também estão enfrentando dificuldades. E os que estão conseguindo desenvolver atividade remota têm visto um enorme decréscimo do número de participantes — um colega, por exemplo, viu sua turma baixar de 150 para 15 alunos nesse período. 

CR: Quais serão as consequências de manter a data do Enem?

IN: As consequências previsíveis de não adiar o Enem são uma acentuação das desigualdades educacionais do país, principalmente pelo critério de renda, no sentido de acesso ao Ensino Superior, já que ele é a principal porta de ingresso no sistema público e privado no Brasil. 

Estudantes advindos das camadas de renda mais baixas terão menos oportunidade de se inscrever, estarão desencorajados. Essas famílias estão preocupadas com garantir o básico da sobrevivência e não poderão dedicar atenção ao Exame. 

E já é uma pequena parcela que almeja isso, até por uma visão socialmente construída, de serem menos capazes, de que aquele não é o lugar para eles, então já estamos falando em desigualdade. E dentre os que se inscreverem e eventualmente prestarem, serão prejudicados pela falta de acesso à educação presencial.

Além disso, uma análise realizada pelo jornal O Estado de São Paulo, com dados de inscrição e desempenho nas provas objetivas do Enem no ano de 2016, mostrou acentuadas desigualdades de raça e gênero: embora pessoas negras do sexo feminino fossem a maior parcela entre os inscritos, ficavam em último lugar quando se considerava as melhores mil notas.

Considerando essas disparidades neste cenário de pandemia, é possível supor que deve diminuir também o percentual de pessoas do sexo feminino inscritas, pois o confinamento social sobrecarrega ainda mais as mulheres com atividades domésticas e de cuidados com familiares, retirando-as da dedicação à escola. E cruzando todos os dados de desigualdade, não é difícil supor que as mulheres negras serão as mais prejudicadas.

CR: O que a decisão de não adiá-lo revela sobre a condução das políticas públicas no país?

IN: Essa decisão de manter o Enem está em um contexto de ataque à educação de forma geral, e à educação pública de forma específica, assim como ao professorado. Está em um contexto de negacionismo da Ciência, da História, e de retrocesso a avanços conquistados pela sociedade brasileira, e não por partidos políticos.

Isso porque temos visto uma interrupção de políticas públicas em várias áreas que vinham evoluindo desde a Constituição de 1988, um marco na afirmação de direitos sociais. Desde sua promulgação, os governos das três esferas vinham, quase sempre sob pressão popular, tentando responder às determinações da Constituição. E as lutas por condições de acesso e permanência vinham dando resultados positivos na forma como as políticas públicas eram elaboradas, discutidas e implementadas. Não estavam resolvidos todos os problemas, mas ao menos estavam avançando. 

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