publicado dia 10/01/2023
Educação Integral, escola e o universo de saberes das comunidades
Reportagem: Tereza Perez
publicado dia 10/01/2023
Reportagem: Tereza Perez
Educação Integral pressupõe inteireza, e para falar de inteireza, recorro a Fernando Pessoa:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
A pandemia de covid-19 desnudou a Educação. Ficamos de cara com a assombrosa desigualdade de condições existente no país, vimos o quanto as equipes escolares se esforçaram para manter o vínculo com as famílias e seus filhos-estudantes e o quanto desconhecíamos a respeito da realidade. Essa experiência explicitou a função social da escola e aguçou a percepção de que é preciso que ela seja inclusiva, trabalhando com a enorme complexidade e potencialidade que a realidade nos apresenta cotidianamente, escolas onde o aprender seja pulsante, instigante, exigente e que os estudantes, ao finalizarem a Educação Básica, tenham orgulho e reconhecimento pelas contribuições e oportunidades geradas pelas equipes escolares. Quando desejamos uma escola com a função social descrita acima, almejamos a Educação Integral.
Tereza Perez é diretora-presidente da Comunidade Educativa CEDAC, lidera diversas iniciativas voltadas para a melhoria das condições de ensino e de aprendizagem nas redes públicas brasileiras.
A Educação Integral considera o sujeito em sua integralidade, celebra a diversidade, fomenta a equidade numa perspectiva inclusiva e rejeita a desigualdade. Ao seguir esses princípios, a educação escolar articula os saberes e quereres dos estudantes e compreende os diferentes tempos de aprender, bem como intensifica e fortalece práticas alternativas que favoreçam a aprendizagem, potencializando tanto o sentido do aprender quanto os saberes locais e globais, individuais e coletivos.
Dentre as inúmeras questões que implicam a Educação Integral, destaco uma: os saberes dos estudantes. No Brasil há milhões com repertórios diversificados, verdadeiras fontes de inovação, que precisam de oportunidades para que seu potencial se apresente ao mundo.
É fundamentalmente na escola que aprendemos a dialogar, fundamentar, argumentar, nomear, sistematizar conhecimentos, aprofundar determinados assuntos, pesquisar, comprovar, diagnosticar, ler dados, conectar saberes, experimentar, trabalhar coletivamente, relacionar-se com o mundo. Muitos dirão: sempre recorremos aos conhecimentos prévios para iniciar uma temática. Isso está corretíssimo, mas quais são os espaços para que conheçamos o que os estudantes sabem efetivamente sobre diferentes temas? Quando podem propor pesquisas, temas de estudo, práticas culturais, experimentos científicos que não estejam aparentemente vinculados ao currículo?
Imaginem a grandiosidade desse país com escolas vivas, conectadas aos diferentes saberes, articuladas com a realidade!
O colunista Preto Zezé, presidente nacional da Cufa, fundador do Laboratório de Inovação Social e membro da Frente Nacional Antirracista, fez uma ponderação importante no artigo Favela e Economia, publicado na Folha de S.Paulo em dezembro de 2022:
“Na verdade, o termo empreendedorismo é novo, porque na favela desde sempre damos nossos pulos, fazemos nossos corres e desenrolamos a situação. Empreender para nós é sobrevivência. E nela fazemos gestão e movimentamos a economia. (…) Durante a Expo Favela, constatamos que sobra talento, criatividade e iniciativas que os próprios favelados criam todos os dias, colocamos frente a frente CEOs de grandes empresas e os homens e mulheres das favelas para pensar desenvolvimento, criar soluções e ampliar negócios.”
O que Preto Zezé nos alerta é para a necessidade do olhar integral para os sujeitos, os saberes que não são reconhecidos na escola, que não brilham em cada estudante como a lua em cada lago, na fala de Fernando Pessoa.
Como a escola se relaciona com os saberes das crianças, adolescentes e jovens favelados, dos que vivem em situação de vulnerabilidade, dos povos tradicionais ou das pessoas com deficiência? O povo brasileiro vive resolvendo problemas porque batalha pela sobrevivência dia a dia, mês a mês, e, assim, as crianças e os jovens desenvolvem inúmeras competências que são construídas para dar conta desses desafios.
Atuar segundo os princípios da Educação Integral é dar relevância para o que as pessoas têm e não só para o que lhes falta. Nós, educadores, sabemos que a resolução de problemas é a base para o desenvolvimento de competências. No entanto, sabemos pouco sobre como conectar as competências e habilidades desenvolvidas nos ambientes não-escolares com as expressas nos currículos.
Penso que a perspectiva apresentada por Preto Zezé seja uma face essencial da Educação Integral: trata-se da necessidade e da grandiosidade de integrar a escola ao universo de saberes das comunidades para reinventá-la.
É desalentador entrar em salas de aula e observar crianças/estudantes copiando, salas organizadas em filas com um estudante olhando a nuca do outro e o professor como o detentor do saber. Olhar os cadernos e verificar que há cópias e cópias, ou listas de resolução de exercícios. O que estão aprendendo? O que nós estamos ensinando? O que nós estamos deixando de aprender e de ensinar a eles?
As metodologias para um trabalho potente não são novidades; são reconhecidas há muitos anos. Somente para citar algumas: projetos, pesquisa de campo, centro de interesse, role-playing e estudo de caso. Essas metodologias foram elaboradas em meados do século passado e expressam uma pedagogia que tem ambição política, que acredita na potencialidade humana, que valoriza os saberes locais e coloca a escola na função de provocar aprendizagens cada vez mais profundas, sistematizar os conhecimentos tendo em vista o propósito curricular.
Hoje, como afirma o pedagogo francês Bernard Charlot, não existe uma pedagogia contemporânea: avalia-se a qualidade da educação de uma escola, município, estado ou país pela posição nos rankings e pouco se debate a pedagogia, os valores e as atitudes que queremos para agora e para os anos futuros. É urgente estabelecer novos indicadores para que possamos acompanhar e avaliar a Educação Integral que queremos.
Podemos, em conjunto, buscar formas de atuação para os problemas já conhecidos das famílias, dos estudantes, da sociedade: reprovação, evasão, abandono, inúmeras faltas, incivilidades, violências, questões de saúde mental de professores e estudantes.
Precisamos nos arriscar a realizar práticas que tornem nosso dia a dia mais produtivo e prazeroso, mais digno do propósito do educando e do educador, para que todos os adolescentes e jovens se permitam sonhar e tenham oportunidade de realizar os seus sonhos.
Não faz sentido pensar em uma educação parcial. Acredito que haja um caminho para a superação, que se inicia pelo crédito e respeito à inteligência e conhecimento das comunidades, dos educadores e dos estudantes. Esse caminho passa pelo desenvolvimento de políticas que trilhem percursos inovadores de formação de professores e gestores, para que tenham condições de tomar decisões com altas expectativas de aprendizagens e construção coletiva de um clima escolar respeitoso, solidário, divertido, favorável aos aprendizados de conhecimento de mundo. Como disse Darcy Ribeiro, é preciso inventar o Brasil que queremos.
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