publicado dia 24/11/2022

Educação Integral: mais tempo para quê?

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O direito à Educação como marco constitucional é bastante recente na maior parte dos países em desenvolvimento, e em especial na América Latina. Após longos anos de violentos regimes ditatoriais, foi só na redemocratização que os países da região retomaram a premissa do acesso e permanência na educação para todas e todos como um postulado orientador de suas políticas públicas¹².

Com um grande passivo de matrículas, entre as décadas de 1980 e 2000, os países latinoamericanos investiram na construção de equipamentos educativos, e de ampliação de salas de aula, buscando atender o contingente de crianças e adolescentes que estavam fora da escola. São exceções Argentina e Costa Rica que em 1970 já tinham mais de 80% da população matriculada na educação primária.

Julia Dietrich é mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e doutoranda em Educação na Faculdade de Educação da USP

Contudo, para atender a essa demanda, foi preciso agrupar o maior número possível de estudantes por turma e garantir mais de um turno letivo em cada unidade de ensino. Na América Latina, a média é de 800 horas distribuídas em 180 dias letivos, o que equivale a 4h30 na escola, quantidade de horas inferior aos países europeus, norte-americanos e asiáticos. E, cerca de 30% das escolas têm jornadas com duração de 3h30.

Nos últimos 20 anos, a discussão sobre o tempo na Educação vem ocupando significativa e crescente presença tanto na agenda de políticas públicas e espaços de decisão de governos e legislaturas, quanto na academia, com a investigação sobre qual seria o “tempo ótimo” ou o tempo mais eficiente para os processos educativos.

O tempo certamente é uma variável importante – seja ele o tempo físico, que é mensurável em horas-aula, horas na escola, dias letivos etc. – ou o tempo imaterial e subjetivo, que diz dos ritmos de aprendizagem, da interação professor(a)-aluno(a) e entre alunos(as). 

Seguindo as discussões do professor e curriculista Gimeno Sacristán³, o tempo aparece como uma dicotomia no espaço escolar: é o tempo do relógio versus o tempo experiencial e individual dos sujeitos e suas relações na escola e com o aprender. 

E essa dicotomia se traduz nos estudos e pesquisas que relacionam tempo e qualidade da Educação. Diferentes perspectivas e concepções para definir tanto a ideia de tempo, quanto o próprio conceito de qualidade. Polissêmico, o termo qualidade está profundamente relacionado com o que se espera do processo educativo ou ainda de uma resposta ou múltiplas respostas sobre o papel social da Educação. 

No Brasil, tendo como base a Constituição Federal, qualidade se refere a um projeto de Estado, que tenha como foco o pleno desenvolvimento dos sujeitos, o preparo para a cidadania e a qualificação para o trabalho. Perspectiva consonante com o que propõe a Educação Integral – da defesa irrestrita ao desenvolvimento integral de cada indivíduo, reconhecendo sua multidimensionalidade, e as relações que cada um(uma) estabelece com seu território e com as outras pessoas, bem como seu papel e responsabilidade que se afirma como proposta coletiva, de equidade e justiça social para todas e todos. 

Dessa forma, pensar o tempo na educação brasileira, em tese, deveria estar relacionado, primeiramente, com a função social da educação e da própria escola. Em nosso país, assim como em todos os países em desenvolvimento, a escola tornou-se o principal sistema de seguridade social das crianças, adolescentes e jovens. Além de ser uma comunidade de produção e sistematização do conhecimento, em muitos casos, ela é o principal instrumento para garantir direitos básicos aos(às) estudantes, como alimentação, higiene, e proteção ao trabalho e à exploração, bem como a outras formas de violência. 

Em uma conjuntura de agravamento das múltiplas iniquidades e vulnerabilidades sociais, econômicas, ambientais e políticas que afetam em maior ou menor grau a imensa maioria das crianças e jovens do nosso país, a escola vem sendo convocada a compreender e responder a complexos e singulares contextos de vida de cada estudante, e cada comunidade. Nesse sentido, a média de 4 horas diárias possivelmente é insuficiente para atender integralmente as e os estudantes.

A discussão sobre o tempo na educação, assim, não pode estar dissociada dos demais fatores que afetam a estrutura escolar e, especialmente do debate pedagógico, uma vez que não há gestão ou organização escolar neutra ou desvinculada da pedagogia (4).

O tempo não apenas configura uma oportunidade para ampliação das interações, das oportunidades de aprendizagem relacionadas ao corpo, à cultura, ao território e às relações sociais, bem como para que a escola possa, em parceria com outras políticas sociais, ampliar o atendimento ao estudante a fim de garantir sua atenção integral. 

Mas, afinal, quanto tempo e para quê?

Em minha pesquisa de mestrado (5), e agora no meu doutorado (6), busco estudar os impactos do tempo na escola na proficiência de estudantes latinoamericanos do 3º e 6º anos da educação básica. E, os resultados obtidos até o momento são bastante interessantes.

Tempo importa (7), mas só se condicionado a alguns fatores estruturantes: infraestrutura escolar, rede de atenção ou proteção ao estudante e fatores pedagógicos, como formação docente inicial e continuada e retroalimentação de práticas, com coordenação pedagógica atuante e espaços de diálogo e acompanhamento da atividade das professoras e dos professores em sala de aula. Quando não relacionados, mais tempo na escola, inclusive, pode ser prejudicial à proficiência. 

Os dados indicam também que mais tempo na escola não mitiga os efeitos nocivos da violência do entorno, provavelmente criando o que se imaginam como escolas isoladas de seus territórios, e reforçando a necessidade de programas que pensem a ampliação da jornada em ações dialógicas com a comunidade. São vastos os estudos de caso que corroboram essa visão, demonstrando a capacidade que a escola tem de não apenas dialogar com o espaço em que se insere, mas até de coibir e modificar as paisagens do entorno, a partir da ocupação do bem público. 

O mesmo acontece com os índices de vulnerabilidade. Mais tempo na escola tende a beneficiar todas as camadas sociais, porém os menos vulneráveis (e mais ricos) se beneficiam mais, criando possíveis ilhas de excelência. Essas escolas, comumente, estão em territórios menos violentos, possuem maior infraestrutura e têm menor rotatividade de professores(as) e maiores oportunidades de formação docente. Ao mesmo tempo, as e os estudantes, apresentam em seus contextos familiares e de vida externa à escola, maiores oportunidades para acessar diferentes repertórios culturais, linguagens e conhecimentos. 

Paralelamente, como dados complementares encontrados em minha pesquisa, o tempo na escola importa mais que o tempo em sala de aula. Ou seja, interações que acontecem nos horários de entrada e saída, no recreio, no brincar livre, nas atividades complementares são parte integrante do processo pedagógico, referendando a visão de que a aprendizagem é multifatorial e beneficiada pelas múltiplas atividades que acontecem no contexto escolar. 

Por fim, ainda que preliminares, os dados apresentam que as diferentes formas de ampliação de jornada importam, e também a quantidade de horas total. Jornadas de 8 horas ou mais não são necessariamente mais interessantes que as de 6 ou 7 horas, indicando que as formas de pensar a ampliação do tempo devem estar relacionadas com os múltiplos e diversos contextos de implementação da política.

Tempo na Educação: não há modelo único 

O tempo tem que estar à serviço do projeto educativo, recuperando o papel único e fundamental da pedagogia e das relações, interações e vocabulários que constituem a aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes. Não há modelo único, não há receita de bolo. Tanto as minhas pesquisas, quanto de outros estudiosos que vêm se debruçando sobre o tema, indicam que o tempo escolar está relacionado não apenas ao modelo de escola ou proposta educativa, mas da compreensão e demarcação política da função social da Educação.

Pensar o tempo na educação brasileira requer compreender profundamente as iniquidades da sociedade (8), e enfrentá-las em projetos customizados, que reconheçam a escola e as professoras e professores como agentes estruturantes capazes não apenas de implementar, mas de pensar e construir as políticas públicas. Significa compreender e construir práticas pedagógicas que reafirmem a democracia, enfrentem o racismo, a homofobia, o capacitismo, e as profundas desigualdades sociais de nossa sociedade. Significa entender a escola nos contextos de violência e violações de direitos, significa entender os equipamentos e serviços que precisam a ela estar articulados e o tempo e as condições físicas, materiais, financeiras que a escola precisa para operar essas múltiplas e complexas dinâmicas. 

Ampliar o tempo sem considerar os fatores que o afetam não é a bala de prata da educação brasileira. E temos agora uma oportunidade única e urgente de convocar todas e todos para pensar juntas e juntos o que de fato desejamos e como fazer valer os princípios enunciados na constituição.

É hora de tirar do papel as lindas letras e concretizar um projeto real para viabilizar o direito à educação para todas e todos. E nessa trilha responder a essas perguntas: quanto tempo? Em que contexto? E de que forma?


¹ Ver Dietrich, 2019.
² Vale lembrar que há uma associação direta entre a afirmação constitucional da educação como política de Estado e a efetivação concreta do acesso à escola (Heymann, Raub e Cassola, 2014)
³ Ver Sacristán, 2008
4  Ver Navarro, 1999.
5 Ver Dietrich, 2019
6 Doutorado em curso, sob orientação do Prof. Dr. Daniel Tojeira Cara, na Faculdade de Educação da USP: Análise comparativa do efeito do tempo escolar na proficiência em linguagens, matemática e ciências de crianças do 3º e 6º ano da Educação Básica em 15 países da América Latina (título provisório).
7 Há ganhos de aprendizagem quando considera-se tanto o aumento do tempo (em horas na escola, e em horas em aula) isolado, quanto controlado por outros fatores (DIETRICH, 2019).
Enquanto os mais ricos que historicamente tiveram mais tempo de escolarização podem ingressar em uma agenda de novas rotinas escolares, os mais pobres vêm lutando, ainda que não uniformemente, por uma escola com mais tempo e com maior capacidade de articulação a outros serviços – ampliando as possibilidades de atenção à criança e ao adolescente, em especial. (DIETRICH, 2019). 

Referências bibliográficas

DIETRICH, Julia. O tempo na educação latinoamericana : Análise sobre a relação entre a quantidade de horas na escola e a proficiência em linguagens e matemática de estudantes do 3º ano da educação básica. Dissertação de Mestrado. Políticas Públicas. São Bernardo do Campo: Universidade Federal do ABC, 2019.  Disponível aqui 

HEYMANN, Jody; RAUB, Amy; CASSOLA, Adèle. Constitutional rights to education and their relationship to national policy and school enrolment. International Journal of Education Development, v. 39, p.131-141, 2014.

NAVARRO, Luis. ¿Qué políticas de pedagogía y gestión escolar son necesarias. De relaciones, actores y territorios: hacia nuevas políticas en torno a la educación enAmérica Latina, IIPE-UNESCO, Buenos Aires, 1999.

SACRISTÁN, GIMENO J. El valor del tiempo en educación. Madri: Ediciones Morata, 2008.

WINTHROP, R. COVID-19 and school closures: What can countries learn from past emergencies? Brookings Institution, Washington, 31 Mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 02 nov. 2021.


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