publicado dia 06/09/2023
Educação antirracista e antifascista em foco no II Seminário de Educação Integral
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 06/09/2023
Reportagem: Ingrid Matuoka
🗒Resumo: Formação integral significa formação antirracista e antifascista. Mas como e por quê? E quais são as bases do pensamento que pode conduzir as escolas nessa direção? Esse foi o centro de um dos debates do II Seminário Nacional de Educação Integral.
O último dia do II Seminário Nacional de Educação Integral, realizado nesta quarta-feira (06/09) na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador (BA), debateu “A Educação Integral como formação antirracista e antifascista”.
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Mediador da mesa, Fernando Mendes, gestor do Centro de Referências em Educação Integral, levantou alguns questionamentos para começar a conversa:
“O que a ausência da garantia do direito à Educação promoveu na formação da nossa sociedade brasileira? O que essa política [de Educação Integral] precisa assegurar para garantir a reparação histórica da garantia de direitos de meninas e meninos que foram negligenciados ao longo da história desse país? São posicionamentos que a escola e a educação pública precisam ter com a viabilização deste compromisso do estado democrático de direito que ainda está em construção no nosso país”, disse.
Com base na obra A Razão Africana, de Muryatan Santana Barbosa, Adriana Moreira, coordenadora-geral de Formação Continuada para a Relações Étnico-raciais e Educação Escolar Quilombola da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação (MEC), explica que a tecnologia fascista se estrutura e se mantém por meio da colonização, sobretudo do neocolonialismo.
“No limite, ações nazistas são racistas também, embora possa haver racismo sem fascismo”, disse a especialista.
Fazendo frente a essa violência, Adriana destaca a importância de instituições negras, como irmandades, a Frente Negra Brasileira e os cursinhos populares, em construir estratégias para manter a população negra viva e com acesso aos direitos fundamentais.
Nas escolas, a luta antirracista passa por efetivar a lei 10.639, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira ao longo de toda a Educação Básica.
Mas também de rever a gestão de tempos e espaços, das redes de ensino, o Orçamento e transformar a alocação das crianças nas turmas. “Se continuo montando uma turma dos melhores e uma dos piores, o que estou construindo nessa escola?”, questionou Adriana.
A EE Deputado Naomar Alcântara, em Salvador (BA), fica localizada em um território quilombola próximo à Pedra de Xangô, patrimônio cultural, geológico, simbólico e mítico da cidade.
A escola realiza projetos de Linguagens, Feira de Ciências e o mês de novembro inteiro dedicado à celebração do povo negro. “Fazemos oficinas, palestras, formação e uma grande culminância, com o objetivo de desmistificar e desfolclorizar o 20 de novembro”, disse Paloma Vanderlei, gestora da unidade e mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA.
Este ano, a escola participa das celebrações do Bicentenário da Independência da Bahia. As meninas da escola organizaram uma peça sobre a presença feminina nessa luta, representando figuras como Maria Filipa, Joana Angélica e Maria Quitéria. “Elas se reconhecem nessas heroínas e nessas histórias”, afirmou Paloma, para quem o trabalho da escola só é possível por causa da formação de professores.
Este ano foram divulgadas as pesquisas “Percepções sobre o racismo no Brasil”, do Instituto de Referência Negra Peregum e pelo Projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista), e “Lei 10.639: A atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, do Geledés – Instituto da Mulher Negra.
A partir destas pesquisas, Tânia Portella, consultora e pesquisadora no programa de Educação no Geledés, apresentou seis pontos de convergência entre os estudos para pensar a formulação de políticas, como o Programa Escola em Tempo Integral e o Plano Nacional de Educação. São eles:
Tânia explica que diante deste cenário, é fundamental uma Educação Integral que não esteja fundada em hierarquização de conhecimento, em desumanização, que não conceba um mundo hegemônico, de versão única, e não promova epistemicídio e banalização naturalizados.
“É enfrentar o racismo como fator de desigualdade educacional, como bloqueio de acesso a direitos, e promover uma transformação social para uma sociedade menos injusta, mais democrática e equânime”, disse.
Wlamyra Albuquerque, professora no Departamento de História da UFBA, explicou algumas distorções feitas na luta antirracista pelo discurso liberal. Uma delas, vigente desde o século 19, é a relação dos estudantes com a rua.
“Dizem que o tempo integral é uma forma de tirar as crianças e adolescentes da rua como forma de garantir segurança a eles e, ainda mais, para a sociedade”, afirmou Wlamyra.
O discurso meritocrático também se faz presente ao colocar a escola como lugar de empoderamento. “É colocar a escola como o lugar onde as crianças e adolescentes vão construir o sucesso delas para ter poder de consumo, um lugar de sucesso na sociedade, onde só alguns se salvam”, explicou a historiadora.
A pressão colocada nos estudantes, sobretudo os mais socialmente vulneráveis e meninas, em serem as “guerreiras e guerreiros” que vão resolver individualmente as mazelas da sociedade, como “bastiões da salvação contemporânea”, tem causado impactos para a saúde mental e expectativas de futuro dessas pessoas. É o que a professora chama de Efeito Bacurau.
As mudanças de que tanto necessitamos, contudo, “passa por uma educação emancipadora, em ser formado para viver, sem compromisso de ser alguém que vai estrelar algum tipo de brilhantismo exigido e vai garantir seu sucesso e enriquecimento pessoal. Também não passa por assumir uma missão e uma responsabilização por uma construção que é coletiva, que passa pela escola, mas também pelos movimentos sociais, partidos políticos, e toda uma sociedade que têm responsabilidade pela transformação social”, explicou Wlamyra.
A formação continuada de professores(as) e todos os profissionais que atuam em uma escola é essencial para um novo currículo, novas práticas pedagógicas e uma escola que atue diante de toda e qualquer situação de racismo em uma perspectiva educativa. Ações concretas, no dia a dia, inclusive por parte da gestão, são fundamentais para uma educação antirracista.
“Que a escola possa ser um espaço de encontro, porque é essa escola pública que vai garantir a construção da democracia e, portanto, de uma sociedade antirracista e antifascista”, disse Carlos Augusto Sant’Anna Guimarães
A gestão democrática também é central. “Como nos ensina Muniz Sodré, […] que a escola seja um espaço de comunhão onde todos possam estar presentes […] e tenham o direito de todos falarem e serem respeitados nos conteúdos de suas falas. Falam de garantir o acesso, mas e o tratamento desigual que se coloca?”, questionou Carlos Augusto Sant’Anna Guimarães, doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas e pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco
A gestão democrática e a participação efetiva de estudantes, familiares, profissionais e da comunidade na escola, explica Carlos, vai gerar conflitos. Cabe à gestão reconhecê-los como essenciais para o processo e saber geri-los em uma perspectiva democrática.
Também é necessário diminuir as distâncias entre as escolas públicas e particulares, para que diferentes grupos e experiências de vida convivam em um mesmo espaço. “Que a escola possa ser um espaço de encontro, porque é essa escola pública que vai garantir a construção da democracia e, portanto, de uma sociedade antirracista e antifascista”, disse o especialista.
O pensador congolês Bunseki Fu-Kiau apresenta a cosmopercepção da África Bantu, um dos principais povos que participaram da formação do Brasil, por meio do Cosmograma Bakongo.
Em um resumo muito sintético, ele representa a trajetória do Sol ao longo de um dia, o que serve para pensar desde a comunidade e dos reinos que se ergueram nesse território, até a história do próprio universo.
Eduardo Oliveira, professor na Faculdade de Educação da UFBA, explicou que o pensamento ocidental não consegue enxergar a metade inferior do círculo, abaixo da linha de Kalunga, que representa o mundo dos ancestrais.
“Eles foram esquecidos, perdeu-se a perspectiva de fundamento, raiz, trajetória de experiências e saberes no entendimento da realidade e de como intervir nela”, disse Eduardo.
Com isso, a população que se entende a partir da lógica ancestral foi excluída do modelo de produção de conhecimento ocidental e das políticas que se formaram a partir disso.
“Se combateu, excluiu elementos que são constitutivos do nosso modo de ser, como a oralidade, comunidade, ancestralidade, corporeidade. Tudo isso foi varrido das nossas escolas e universidades e fomos alijados do que nos constitui, das nossas identidades. Assim fica mais fácil um projeto de dominação sobre nós”, detalhou o educador.
Assim, no ocidente predomina a ideia de uma razão, de uma verdade única. “Isso normalmente resulta em sistemas dogmáticos e ditadores, que produz efeitos previsíveis de vampiros no poder, e fascistas no poder que encarnam o necropoder”, afirmou.
A retomada se faz imprescindível. “Nosso saber e nossa experiência vem muito antes da formulação desse jeito de olhar o mundo. É preciso reivindicar esse lugar de produção de saber, de conhecimento, de sentido, de gozo, de vida, como condição inalienável para uma educação efetivamente integral”, disse Eduardo.