publicado dia 04/10/2019
Como falar sobre masculinidades com crianças
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 04/10/2019
Reportagem: Ingrid Matuoka
A cada quatro meninos e adolescentes de até 17 anos, um afirma se sentir solitário sempre. Dentre 10, apenas três possuem o hábito de conversar sobre os seus maiores medos e dúvidas com amigos. E a cada 10, seis afirmam lidar com distúrbios emocionais.
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Os dados são da pesquisa sobre o silêncio dos homens, que entrevistou mais de 47 mil pessoas de todo o Brasil, e aborda a necessidade de debater e mostrar diferentes maneiras de ser homem. E falar sobre as várias masculinidades significa permitir que meninos e homens aprendam a poder chorar, a serem vulneráveis, a falarem sobre como se sentem e a cuidar. Disso depende a construção de um mundo mais equitativo para todos.
É sobre esse tema que o coordenador do projeto, Ismael dos Anjos, que recentemente também lançou um documentário sobre o assunto, conversou com o Centro de Referências em Educação Integral. “Precisamos construir versões melhores do que é ser homem.”
Ismael dos Anjos: Tudo que mais tarde vai se tornar dores que os homens causam no mundo, vem de dores que eles sentem e não aprenderam a lidar cedo na vida. Por isso, temos que mostrar para os meninos que existem muitas maneiras possíveis de ser homem, que existem masculinidades, no plural, porque há diferenças entre homens negros, brancos, gays, os mais broncos, outros mais sensíveis.
E que também existem outros jeitos saudáveis de lidar com a raiva, que não envolvem a violência como recurso ou linguagem, e que eles podem dialogar e falar sobre sentimentos.
Quanto antes começarmos a fazer isso, melhor, porque para construirmos um mundo verdadeiramente equitativo, todos temos que estar implicados na equidade de gêneros. E para os meninos isso também é melhor, porque passam a entender que têm mais possibilidades de ser quem desejam ser.
IA: O maior é a existência do machismo, a noção de que homens são superiores, e todas as violências e problemas sociais que derivam disso, desde os feminicídios, os abusos e assédios, até a equiparação salarial.
Para os meninos, faz mal os comportamentos aliados a essa ideia nociva do que é ser homem. Eles estão sempre numa constante luta para não perder a carteirinha de macho, ter que se provar homem o tempo todo, tem uma restrição emocional de não poder ser vulnerável, não poder ficar triste.
Eles também vivem em uma eterna competição para cumprir uma série de requisitos impossíveis de se cumprir o tempo inteiro, embora alguns sejam até desejáveis, por exemplo ser corajoso, mas mesmo assim não dá para ser corajoso sempre.
Também falam que homem tem que aguentar o tranco e nunca levar desaforo para casa. Mas não dá. Essas frases estão arraigadas na nossa sociedade e vão construindo a noção do que é ser homem. Mas precisamos construir versões melhores do que é ser homem.
IA: Conversando com a Raquel Franzim, coordenadora do Escolas Transformadoras do Instituto Alana, ela me falou uma coisa que marcou muito. Ela explicou que o cuidar se divide em três etapas principais: cuidar de si, do outro e do ambiente ao redor.
Então as meninas são compulsoriamente ensinadas a cuidar, nessas três dimensões. Elas têm que estar sempre arrumadas, limpas, brincar de casinha e mamãe e filhinha. Elas são responsáveis por tarefas domésticas, lavar a louça, passar a vassoura.
Enquanto isso, aos meninos esses três cuidados são negados. Se ele está sujo, é porque menino é assim mesmo. Cuidar do outro de jeito nenhum, porque as brincadeiras são de competição e se alguém cai e rala o joelho, não pode chorar porque “é coisa de menininha”. E também não se vê homens em posição de cuidado, não vê o pai cuidando da casa, nem um professor na Educação Infantil.
Ao contrário disso, muitas vezes a noção de cuidado para esses homens se resume a uma vaga ideia de proteção. Então “aqui em casa isso não vai acontecer”, ou “com o meu filho não pode”. Então precisamos de mais cuidado como sociedade, e ensinar aos meninos esses três pilares básicos.
IA: O melhor caminho é o exemplo, principalmente com crianças pequenas. Eu tenho um filho de 5 anos, o Francisco, e ele entende na prática que cabe a ele cuidar de si quando ele me vê me cuidando, cozinhando, arrumando a lancheira dele e fazendo as coisas básicas de quem mora em uma casa. É assim que ele começa a entender que homens também podem estar em uma posição de cuidado.
Mas também é importante que quando um coleguinha cai e se machuca, vá junto ver o que aconteceu, abaixar, olhar no olho, perguntar como está, e conversar abertamente sobre sentimentos. É demonstrar sentimentos, falar eu te amo, deixar seu filho te ver chorando, e contar por que está triste. Acho essencial aprender a nomear sentimentos desde cedo, saber identificar o que é medo, frustração, tristeza, para ter mais repertório.
E também é conversar. Com o meu filho funciona perguntar o porquê das coisas. Então quando ele fala que tal coisa é “de menina”, eu questiono ele, e aí ganhamos uma brecha para conversar que meninos não precisam ser viciados em futebol, e que meninas também são corajosas.
IA: Conversando sobre isso com a minha esposa, a Juliana Labraña, que é educadora, acho que é importante tentar dinamizar as relações entre meninos e meninas. Desde cedo eles se fecham em grupos, não se misturam. Então é promover múltiplas brincadeiras, que sejam inclusivas. E também ir apagando as ideias do que é de menino e o que é de menina.
E conforme eles vão crescendo, é introduzir leituras mediadas de assuntos que mostram meninas em posição de poder, que estão fazendo coisas diferentes, e meninos que se preocupam, cuidam, e não só os que reforçam essa masculinidade mais clássica.
Temos que refletir sobre quais referências masculinas estamos mostrando para as crianças em livros, filmes e desenhos. Se é uma só, se podemos oferecer mais de uma, e que outras seriam essas.
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Outra coisa é, na medida do possível, os gestores estarem atentos para incluir homens nas posições de cuidado, e estimular formação de professores homens, para eles entenderem que essa pode ser uma coisa para eles também.
E o tempo todo falar sobre sentimentos. Pensando nos meninos, a única emoção estimulada neles é a raiva como resposta universal para o que quer que eles estejam sentindo. Então é fundamental nomear e legitimar sentimentos diferentes.