publicado dia 27/06/2023

Castilho: Compromisso Nacional Criança Alfabetizada deve vincular leitura e escrita às práticas sociais

Reportagem:

Proposto em junho pelo Ministério da Educação (MEC), o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada é capaz de atender às demandas e responder aos desafios no âmbito do direito à leitura e escrita no Brasil?

Para José Castilho Marques Neto, que foi responsável pelo Plano Nacional do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca (PNLL), de 2006, quando foi Secretário Executivo do PNLL (MinC e MEC), a definição de uma política pública focada no tema é bem-vinda no contexto de reconstrução política do país, mas aponta limites e problemas na concepção de alfabetização adotada. Apesar do ponto de atenção, Castilho aponta que a sociedade foi ouvida e que a política tem o potencial de chegar a milhões de estudantes e milhares de escolas.

“Ela não leva em conta que a construção da leitura é social, que alfabetizar de maneira avançada é organizar também de maneira avançada o pensamento. Ela não busca habilidades que vinculem leitura e escrita às práticas sociais”, explica o especialista, que empresta seu nome à Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), de 2018, a Lei Castilho.

Quando crianças que estão aprendendo a ler e a escrever podem ouvir as opiniões dos colegas sobre um mesmo texto, quadro ou grafite, elas aprendem muito mais do que a alfabetização no sentido mais literal. Trata-se de uma oportunidade de aprender a se expressar, ouvir opiniões diferentes, dialogar e construir sua própria maneira de pensar e ler o mundo, além de ler e escrever – e as bibliotecas escolares são o ambiente ideal para promover esse tipo de formação cidadã.

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“É preciso repensar os cantinhos de leitura e bibliotecas como um espaço de absoluta interação e práticas sociais da leitura e da escrita, trazendo a prática social e cultural, a vida real, para dentro da escola, e a escola para fora dela”, diz o especialista em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral.

Doutor em Filosofia e professor aposentado da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Castilho dirigiu a Editora Unesp por 27 anos e foi diretor geral da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo (SP). Hoje é consultor em políticas públicas de leitura.

Na entrevista, o especialista avalia o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, lançado pelo Ministério da Educação (MEC) em junho deste ano, à luz desta concepção, e começa definindo o que é ser um leitor ou leitora para este entendimento. Leia a seguir:

Centro de Referências em Educação Integral: O que significa ser um leitor ou leitora na perspectiva da Educação Integral e dos estudos e legislações mais contemporâneas, como a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), conhecida como Lei Castilho? 

José Castilho Marques Neto: O leitor ou leitora, antes de tudo, deve ser compreendido em meio a uma construção social da leitura, que está longe de ser apenas uma decifração de caracteres. 

Também não é quem tem o hábito de ler, mas quem interpreta permanentemente tudo o que lê, que está sempre se reconstruindo, tendo outras visões.

É algo que há muitos anos a prática e vários teóricos, como Paulo Freire, demonstraram ser correta: a leitura não é apenas o que vemos no texto escrito. Ela vai desde pinturas rupestres até quadros, o que está nos celulares e os grafismos nos muros da cidade – qualquer base ou expressão comunicativa.

“Ser leitor ou leitora parte da constatação do direito humano que é a leitura e a escrita, que abrange uma leitura do mundo, como dizia, resumidamente, Paulo Freire”, aponta José Castilho.

A partir do momento em que se entende a leitura e a escrita como uma construção social, implica necessariamente que haja um contexto social em que elas ocorrem, onde o contraditório se coloca, a respeito de um mesmo objeto.

Se colocarmos um quadro na frente da sala de aula, a leitura que os estudantes farão será diversa e, eventualmente, contraditória. Desse confronto de observação, olhares e leituras, na vivência desse contraditório, é que as crianças vão crescer, raciocinar, vão achar a sua própria palavra, sua própria maneira de interpretar e dizer o mundo. 

Ser leitor ou leitora parte da constatação do direito humano que é a leitura e a escrita, que abrange uma leitura do mundo, como dizia, resumidamente, Paulo Freire.

CR: Quais deveriam ser as prioridades brasileiras para que esta agenda avance nos próximos anos? Como esse avanço beneficia todos os cidadãos? 

JCMN: Nós precisamos mudar as perspectivas e as centralidades, no caso da escola, mas também da organização da cidade, e revalorizarmos o que chamamos de biblioteca viva desde o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) de 2006. 

Há exemplos claros não só no Brasil, como também nas escolas chilenas, que tem um sistema de bibliotecas CRA, os Centros de Referência de Aprendizagem. 

Nessa rede, a biblioteca se torna o centro de aprendizagem de toda a escola, não só dos estudantes, que vão lá fazer pesquisas, porque isso é clássico. Mas ela se torna um centro vital e dinâmico de conhecimento, onde convergem os professores, os alunos, os funcionários, onde há diálogo e interdisciplinaridade.

Trata-se de favorecer toda uma dinâmica onde esse leitor é construído e onde leitores já formados também contribuem para a formação de novos leitores e se reconstroem ao mesmo tempo.

“A biblioteca viva de uma escola pode ser reproduzida na cidade, com as bibliotecas públicas interagindo com a comunidade”, indica o especialista.

A biblioteca viva de uma escola pode ser reproduzida na cidade, com as bibliotecas públicas interagindo com a comunidade. Ela pode promover uma dinâmica de formação da cidadania, onde as pessoas vão entender seus direitos e deveres, prestar serviços para a comunidade, buscar informações para seus negócios próprios e seus trabalhos, realizar um intercâmbio de visões, inclusive nas atividades artísticas, como teatro, cinema, sarau e colóquios. 

Uma sociedade que cada vez mais está isolada ou que querem o isolamento, a individualidade exacerbada, a meritocracia, esse isolacionismo que o mundo contemporâneo coloca, está levando para a situação caótica que vemos no Brasil e no mundo. 

Estrategicamente, uma política pública voltada para o incentivo ao coletivo, ao intercâmbio de leituras que necessariamente passa pela formação continuada de leitores, é um caminho possível para sair desse buraco. 

CR: Em que medida o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, lançado recentemente, atende às demandas que o Brasil enfrenta para garantir o direito à leitura e escrita no país? Quais oportunidades e limites esse Compromisso apresenta? 

JCMN: Estamos em um momento de reconstrução do país como um todo, então louvo os pactos desse Compromisso e seu potencial de chegar a milhões de estudantes e milhares de escolas. 

Do ponto de vista da governança, foi ouvido o conjunto da sociedade. São boas práticas de gestão que precisam ser exaltadas nesse Compromisso. Eu, que já vivi uma ditadura e agora passamos pelo governo Bolsonaro, acho bom ver esse tipo de prática democrática voltar. É a construção de uma ideia coletiva do que precisa ser feito para sairmos dessa catástrofe humanitária que é ter menos de 50% de crianças consideradas alfabetizadas

Contudo, essa política traz uma concepção de alfabetização que não renova aquilo que a própria ideia e a metodologia de alfabetização vem praticando em vários momentos da história, inclusive recentemente.

Ela não leva em conta que a construção da leitura é social, que alfabetizar de maneira avançada é organizar também de maneira avançada o pensamento. Ela não busca habilidades que vinculem leitura e escrita às práticas sociais.

Dessa forma, as crianças não participarão efetivamente de práticas escolares que sejam instrumentos para a construção da leitura crítica. 

A questão que é colocada para o estudante do 2º ano, de poder transformar elementos sonoros em escrita, é uma habilidade importante, mas está longe de proporcionar o desenvolvimento de pensamento crítico, de permitir que ele encontre sua própria palavra nisso, de desenvolver uma consciência das interpretações, ideias e opiniões suas e dos outros. 

CR: A proposta do MEC também aborda a questão dos cantinhos de leitura e bibliotecas escolares. Qual a sua opinião sobre essas duas estratégias e o que mais precisaria ser articulado para assegurar a formação de leitores?

JCMN: Na política do MEC, não vejo a valorização das bibliotecas vivas, do convívio, do contraditório, que faz parte da vida das crianças e não é algo teórico e abstrato. Em qualquer boa sala de aula e biblioteca se vê que as crianças leem uma mesma questão de vários ângulos, é só não cerceá-las. 

Não desenvolver essas habilidades de várias leituras não atende à nossa diversidade e impede que se crie uma comunidade de leitores. Isso esconde um problema político grave de fundo: o mundo de hoje está sendo construído para a não-formação de comunidades de sujeitos. 

A individualidade está nos levando a sujeitos cada vez mais isolados do que deveria ser a vida gregária que todos nós ansiamos e, assim, acabamos não formando cidadãos.

É preciso repensar os cantinhos de leitura e bibliotecas como um espaço de absoluta interação e práticas sociais da leitura e da escrita, trazendo a prática social e cultural, a vida real, para dentro da escola, e a escola para fora dela.

Isso demanda estudos cuidadosos de que tipo de material vai chegar às escolas, acessibilidade, formação continuada de professores e bibliotecários e planejamento para a interação com o território e a construção contínua de práticas sociais de leitura e escrita.

CR: Pode relatar algumas experiências de escolas e redes que realizam uma boa formação de leitores? 

JCMN: Além da rede CRA, no Chile, no Brasil, tive a oportunidade de percorrer o país enquanto Secretário do Plano Nacional do Livro e Leitura, vi muitas experiências interessantes de bibliotecas de escolas públicas. 

À época, realizamos oito edições do Prêmio Viva Leitura, que foi descontinuado e deve ser retomado agora, e catalogamos 16 mil boas práticas, mas todas de maneira isolada, com esforço pessoal e muita resistência. Então precisamos valorizar mais essas práticas e dar melhores condições para que elas aconteçam.

“Aquele lugar era uma festa, cheia de gente e conversa, como toda biblioteca deveria ser: viva”, diz José Castilho.

Lembro, por exemplo, de uma escola pública da rede de Contagem (MG), que sua arquitetura datava do regime militar. Ela parecia um quartel. No fim de um corredor, havia um lugar muito iluminado – literalmente uma luz no fim do túnel – e era a biblioteca da escola. 

Os alunos do Ensino Fundamental tinham acesso direto às estantes, que eram baixas, organizadas não apenas por classificação oficial, mas por cores, por temas, com destaque para os livros da semana, com tapetes e almofadas para as crianças lerem deitadas ou até dormir. 

Cheguei na hora do lanche e tinha chá, café e vários tipos de bolo, mas que eram feitos pela diretora da escola. Eu entrei e as crianças me convidaram para sentar com elas. Fiquei mais de uma hora conversando com as crianças e as duas atendentes da biblioteca, que eram orientadas por uma bibliotecária que atendia seis escolas da rede. 

Aquele lugar era uma festa, cheia de gente e conversa, como toda biblioteca deveria ser: viva.

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