O que a alimentação pode ensinar sobre nossa cultura?
Publicado dia 14/11/2017
Publicado dia 14/11/2017
Os ingredientes, o modo de preparar os alimentos e os pratos que compõem a mesa dos brasileiros são muito mais que simples hábitos. A alimentação é também uma abordagem para conhecer e entender a cultura e história de nosso povo.
Ao retomar a trajetória de um alimento, é possível pensar a história humana a partir de uma nova perspectiva, além de abordar questões sobre deslocamento, colonização e ocupação do território brasileiro.
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Para André Luzzi, mestre em História Social pela FFLCH, doutor em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP e membro da Ação Cidadania, um olhar mais atento sobre a alimentação permite compreender formas de viver e de se comportar de diferentes grupos sociais.
Ao retomar a trajetória de um alimento, é possível pensar a história humana a partir de uma nova perspectiva, além de abordar questões sobre a ocupação do território brasileiro
João Luiz Maximo, doutor em História Social pela USP e professor de História da Gastronomia no Centro Universitário Senac, acrescenta:
“Basicamente todos os aspectos da comida são culturais. Desde a escolha dos ingredientes até a forma como sentamos à mesa”.
Nesse sentido, um antigo caderno de receitas diz muito mais do que o passo a passo para a preparação de um prato. O material é também uma ponte para entender o contexto social e político de um tempo.
Maria Conceição Oliveira, pesquisadora da cozinha e cultura negra e integrante do projeto Comida de (I)migrante, conta que encontrou um livro da década de 1950 com uma receita de “Bala de Getúlio”. Depois de muita pesquisa, descobriu que o nome do doce era uma referência à morte do presidente Getúlio Vargas, ocorrida em 1954.
“É possível descobrir a forma como um povo vive analisando como ele se relaciona com os alimentos. É na comida que você tem a preservação da memória de um povo”, diz.
As receitas também são uma forma de transmissão de conhecimento e saberes entre gerações. Para Maria Conceição, o preparo de um prato típico da cultura negra também diz muito sobre a ancestralidade e a memória daquele povo.
De acordo com a pesquisadora, pratos considerados típicos hoje revelam fatos da ocupação da população negra no Brasil. “Quando as mulheres negras chegaram na Bahia, por exemplo, reconheceram ou trouxeram com elas o azeite de dendê e começaram a criar seus pratos. Estas comidas também têm proximidade com a portuguesa, já que a mulher negra, na cozinha, tinha a orientação da sinhá”, explica.
Maria Conceição destaca ainda como a presença africana em Minas Gerais marcou a culinária local. Pratos como ‘fufu’ e ‘pirão de fubá’ carregam a memória de países como Angola, Congo e Moçambique, onde são apreciados. Fazer receitas a partir da fermentação de mandioca e abacaxi também era uma tradição dos escravos.
“A grande questão da cozinha negra brasileira é que ela foi criada dentro do ambiente hostil da escravidão. É uma comida afro-brasileira, criada aqui, mas com memórias da África”, afirma.
A culinária como saber do território é o tema do livro “Sabores e Saberes: memórias que atravessam tempos e espaços”, disponível para download gratuito. A publicação é fruto de um projeto realizado em três escolas do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, com o intuito de resgatar a alimentação no processo pedagógico, ressaltando seus aspectos culturais e comportamentais. Para isso, reúne receitas e experiências coletadas a partir de um processo de escuta das famílias e crianças da região.
Levar esses pontos que envolvem a alimentação para a sala de aula é uma forma de aproximar os alunos de temas complexos que, muitas vezes, ficam apenas na teoria.
Com frequência, nos surpreendemos ao descobrir que algum alimento comum nas Américas também é comum na Europa ou na África. André Luzzi explica que esse fato evidencia os fluxos migratórios de diferentes povos pelo território, levando suas tradições e hábitos alimentares.
“Assim como as pessoas caminham, por escolha ou de forma forçosa, os alimentos também estão em migração e isso faz com que alguns ingredientes fiquem mais dispersos”, diz.
Por exemplo, na África a presença da mandioca está relacionada à vinda dos portugueses ao Brasil. “Em um momento de ameaça de fome em alguns países africanos, foi levado esse alimento do dia a dia de alguns grupos indígenas”, conta André.
Sobre o mesmo ingrediente, João Luiz Maximo explica que ao recuperar a alimentação e a história de alguns grupos indígenas do Brasil é possível entender a importância da mandioca no norte e a presença do ingrediente no litoral do país. “No interior, no entanto, o milho terá mais força para se espalhar, já que para alguns grupos é um alimento mais fácil de manusear”, completa.
Além da discussão, colocar os alunos em contato direto com os alimentos é essencial. A construção de uma horta, por exemplo, permite abordar conceitos da Biologia e Química, assim como o debate sobre agrotóxicos e alimentos agroecológicos. Preparar uma receita a partir do que foi coletado também é interessante.
Desse modo, incorporar o alimento no projeto político pedagógico da escola é uma forma rica de articular várias áreas do conhecimento. “É interessante criar um olhar mais integral para o alimento e pensar como os ingredientes podem fazer parte de conteúdos de Matemática, Química e Geopolítica, por exemplo”, comenta André Luzzi.
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