Na Waldir Garcia, trabalho pedagógico é motor de inclusão e aprendizagem
Publicado dia 04/11/2024
Publicado dia 04/11/2024
Desde 2016, a Escola Municipal Professor Waldir Garcia, em Manaus (AM), trabalha a partir da concepção de Educação Integral e com jornada ampliada. De lá para cá, viu a transformação do seu fazer pedagógico mudar também a relação entre as pessoas. Conheça a história da escola e confira um Raio-X detalhado de seu trabalho no Especial Escolas de Educação Integral.
“Na nossa turma, um ajuda o outro. Se um aluno está indo mal, é responsabilidade de todo mundo”, costuma dizer a professora Danielle Pinto Coelho para seus estudantes de 5° ano da Escola Municipal Professor Waldir Garcia, em Manaus (AM). A educadora acredita que a ideia de coletividade ecoa por toda a escola e é colocada em prática em diferentes dimensões.
Nas salas de aula, por exemplo, as crianças trabalham sempre em grupos variados, nunca sozinhas, ainda que cada uma delas tenha seu próprio roteiro de estudos. O professor e a lousa não ocupam o centro, que dá lugar às várias trocas entre todos.
A reprovação dos estudantes deixou de existir em 2015, quando a escola começou a receber mais migrantes e refugiados, como venezuelanos, haitianos, cubanos, bolivianos e dominicanos. Sem dominar a Língua Portuguesa, não tinham condições de realizar as avaliações e acabavam punidos por isso.
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A proposta se refletiu no desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) da escola. Em ascensão desde 2013, o índice chegou a 8,1 em 2023.
Na escola, que atende 238 estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, as avaliações são contínuas, formativas e os próprios estudantes se avaliam. Em roda, cada um dá uma nota para seu desenvolvimento naquele bimestre, justifica a escolha e a turma comenta se concorda ou não.
“A gente costuma pensar que se fizer isso eles só vão se dar 10, mas não é isso que acontece. Eles costumam se dar notas mais baixas e é interessante ver que os colegas apoiam, lembram de algo diferente que o colega fez, de alguma participação interessante, e acabam dando uma nota maior para ele”, diz Danielle.
A Waldir Garcia também trabalha a partir das tutorias, para acompanhar o desenvolvimento dos estudantes de forma integral. Cada criança escolhe um adulto de referência da comunidade escolar, que pode acompanhar semanalmente até 5 estudantes em relação à parte pedagógica, mas sobretudo em termos de como vai sua socialização, a vida fora da escola, o acesso a direitos e outras condições fundamentais para sua formação plena.
Essa forma de ensinar, aprender e estar na escola se tornou o motor para criar uma cultura colaborativa, cidadã e de valorização das diferenças em um contexto de muita diversidade, já que por ser reconhecida na cidade por sua proposta inclusiva a escola recebe muitos estudantes com deficiência, migrantes e refugiados, e de diferentes classes sociais.
“O roteiro de estudos personalizado mostra que cada um tem seu tempo e forma de aprender, e que aqui isso é respeitado. Conforme tiramos a nota e as avaliações meritocráticas, diminuiu a competição entre as crianças e estimulou a colaboração e a empatia, além de reforçar que a função da prova é a aprendizagem, não a punição. Aqui, ninguém tem medo do dia de prova”, celebra a gestora da unidade, Lúcia Cristina Cortez.
“Conforme tiramos a nota e as avaliações meritocráticas, diminuiu a competição entre as crianças e estimulou a colaboração e a empatia, além de reforçar que a função da prova é a aprendizagem, não a punição”, afirma Lúcia Cortez.
Os roteiros de estudo, que são mensais, atrelam o currículo às questões contemporâneas do Brasil e do mundo, além de valorizarem a multiculturalidade – na teoria e na prática.
“Meus filhos e sobrinhos sabem fazer receitas da Venezuela, já experimentaram várias comidas indígenas e me ensinam sobre como é a vida no Haiti”, relata Alessandrine Silva, mãe e tia de quatro estudantes da escola, que têm entre 7 e 10 anos.
O território de aprendizagem não se resume à escola e alcança praças, parques, museus, zoológico e universidades. A comunidade também vai à escola realizar formações para todos, como instituições de Ensino Superior que recentemente formaram professores, estudantes e famílias em Filosofia e em iniciação científica.
O desenvolvimento integral dos estudantes também envolve a formação para uma participação ativa, cidadã e crítica em sociedade. A escola, enquanto um microcosmos social, pode ser um espaço produtivo para tanto.
Na Waldir Garcia, há diversas instâncias de participação, como Assembleia, Conselho Escolar, Grêmio Estudantil e Escola de Pais. Na entrada da unidade, uma lousa fica à disposição de todos para apontar problemas e melhorias.
Os temas são levados para uma pré-assembleia, realizada em cada uma das turmas, e depois discutidos pela escola toda em uma Assembleia semanal. Qualidade da merenda, horário do recreio e festa da família foram alguns dos temas debatidos este ano. Juntos, a escola discute, vota nas soluções e faz os encaminhamentos práticos.
“Minha filha, que tem 10 anos, faz parte do Grêmio Estudantil. Este ano, eles estão lutando para que a Waldir Garcia possa atender o 6° ano do Ensino Fundamental, um desejo das crianças do 5°, que não querem deixar a escola”, conta Alessandrine, que também integra o Conselho Escolar e um dos Grupos de Trabalho da escola.
“Faço parte da Comunicação, então cuido das redes sociais, faço cobertura de eventos, filmagens e fotos”, relata.
Para ela, a transformação nos filhos e sobrinhos após serem incentivados a participar ativamente da escola é nítida. Recentemente, em uma conversa entre adultos sobre o destino de uma verba para comprar um carro, seu filho de 7 anos acrescentou que seria importante reservar uma parte do dinheiro para a reforma da casa.
“E ele estava certo sobre isso e mostra a autonomia, o poder de reflexão e compreensão do mundo que eles têm já tão cedo. Nas conversas e formas de lidar no dia a dia, percebo que eles sabem sobre seus direitos e demandam serem tratados de forma horizontal. Com eles, não tem autoritarismo”, observa Alessandrine.
“Esses dias falei daquele jeito meio sem pensar, que se eles não tomassem banho, ficariam sem janta. Eles disseram que não tem nada disso, que alimentação é um direito e eles iam ligar para o Conselho Tutelar”, conta a mãe entre risadas. “É claro que eles não iam ficar sem jantar, mas mostra como eles se posicionam e resolvem conflitos”, diz.
Na escola, a mediação de conflitos também é coletiva e democrática. Quando acontece algum problema na escola, formam uma roda de conversa e discutem o ocorrido.
“Temos currículo, calendário e horas a cumprir, mas temos que humanizar esse espaço, colocar as pessoas na centralidade, porque são elas que importam. A escola precisa ser escuta e romper com a pedagogia do silenciamento”, defende a gestora Lúcia.
Quando a escola decidiu adotar a concepção de Educação Integral e a jornada estendida, debruçaram-se longamente sobre os conceitos, práticas de outras escolas, receberam especialistas e visitaram outras escolas. “A formação de professores foi o que fez a diferença para escola ser o que é hoje”, constata Lúcia.
Há formações continuadas, entre os pares e em serviço, quase todas coletivas, como é o caso do Almoço Pedagógico, que também promove a socialização entre os educadores. “Já fiz formações para os meus colegas em vários temas, como Transtorno do Espectro Autista e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”, conta Danielle, que também é professora da sala de recursos.
Além da formação, a escola busca o cuidado integral com seus professores e funcionários, que também têm seus próprios tutores e participam de formações coletivas. “Os professores também fazem suas próprias autoavaliações, que em breve vamos estender para todos os funcionários, e são momentos muito ricos para a gente se ouvir e pensar junto como melhorar”, diz a professora Danielle.
Em consonância com o projeto da escola, todos os estudantes com deficiência participam de todas as atividades da escola junto com seus colegas. Contudo, alguns deles precisam de um apoio adicional do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Por orientação da Secretaria Municipal de Educação, somente os estudantes com deficiência que possuem laudo podem ser recebidos no AEE.
“Queremos ser respeitados como profissionais da Educação que pensam e pesquisam. Não queremos ser meros executores de diretrizes que outras pessoas pensaram”, diz Lúcia Cortez
“Muitas famílias não tiveram a oportunidade e condições de diagnosticar seus filhos, porque o acesso à Saúde e às terapias é muito precário. Mas nós, que estamos com eles todos os dias, percebemos que alguns deles precisam desse atendimento e recebemos eles no AEE mesmo assim, algo que a Secretaria quer que a gente deixe de fazer”, relata Danielle, que é especialista em AEE e neuroeducação.
Além de receber estas crianças no AEE, a escola se empenha em dialogar com as famílias e incentivá-las e apoiá-las na busca por atendimento médico. “Estou aqui há 17 anos e, até hoje, todos os encaminhamentos que fizemos voltaram com o laudo, porque de fato tinha alguma questão”, diz a professora.
Por seu trabalho de inclusão de todos os estudantes, gestão democrática e promoção de aprendizagens significativas, a escola é reconhecida no Brasil e no mundo.
Integrante da rede de líderes escolares mundiais da Unesco e dos programas Escolas2030 e Escolas Transformadoras, a unidade já recebeu dezenas de prêmios, para citar alguns: Prêmio Territórios, Educador Nota 10, Prêmio Itaú-Unicef e Nestlé por Crianças Mais Saudáveis.
Publicações de Bogotá, Colômbia e da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos da América, também se dedicaram a estudar e sistematizar o trabalho da escola que, contudo, enfrenta uma série de desafios para seguir com seu trabalho.
“É difícil manter um bom diálogo com a Secretaria de Educação. Somos mal vistos por reivindicar nossos direitos, por brigar para executar essa proposta pedagógica, por acreditar nessa metodologia diferente”, afirma Lúcia.
A gestora explica que o embate surge principalmente da tentativa de implementar na escola políticas e programas planejados pelo Ministério da Educação e a Secretaria Municipal de Educação sem a participação da comunidade escolar.
“Queremos ser respeitados como profissionais da Educação que pensam e pesquisam. Não queremos ser meros executores de diretrizes que outras pessoas pensaram. Aqui temos demandas específicas e tudo o que fazemos parte da escuta e do trabalho coletivo com estudantes, professores, funcionários, famílias, a comunidade e o território”, defende Lúcia.
Ficha técnica | Especial Escolas de Educação Integral
Coordenação técnica: Fernando Mendes, Natacha Costa e Raiana Ribeiro
Edição: Tory Helena
Reportagem: Ingrid Matuoka
Conteúdo digital: Larissa Alves
Design: Vinicius Corrêa
Centro de Referências em Educação Integral
O Centro de Referências em Educação Integral promove, desde 2013, a pesquisa, o desenvolvimento metodológico, o aprimoramento e a difusão gratuita de referências, estratégias e instrumentais que contribuam para o fortalecimento da agenda de Educação Integral no Brasil.