Educação antirracista na prática: conheça a escola Dorcelina Gomes da Costa, em Cidade de Deus (RJ)
Publicado dia 18/12/2020
Publicado dia 18/12/2020
Quando as crianças chegam pela primeira vez na Escola Municipal Dorcelina Gomes da Costa, que fica no seio da comunidade da Cidade de Deus, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), é comum que elas passem pelo portão cabisbaixas, amuadas, arredias e com baixa autoestima. E não é à toa. Acostumadas à negligência do poder público, à violência do confronto entre polícia e tráfico, vitimadas pelo expressivo racismo e os danos da vulnerabilidade social desde os primeiros anos de vida, não sobra muito espaço para serem o que são: crianças.
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Mas é aos poucos que vão descobrindo que essa escola por onde agora circulam propõe algo diferente e os enxerga de outra forma, fruto de um trabalho e uma concepção pedagógica antirracista cultivada há anos. Dorcelina possui um projeto permanente de valorização da cultura e da identidade negra, visto que a maior parte dos estudantes que recebem são também negros, e de identificar e trazer para a escola as belezas e potencialidades das pessoas da comunidade e do território, afinal há muito mais na Cidade de Deus do que os jornais costumam mostrar.
Ao estabelecer, em primeiro lugar, relações de afeto e confiança com esses estudantes, os educadores começam a cativar sua atenção por meio de assuntos que os interessam, como o samba. Depois, planejam alguma maneira de trazer para a escola a família e pessoas da comunidade que tenham algum saber para compartilhar, como o Mestre Siqueira, um famoso sambista e avô de Dóris Samara de Alcântara Alves, aluna do 9º ano. Antes da pandemia, Mestre Siqueira foi à escola apresentar sua música para a garotada e dividir um pouco de sua história.
“Ele contou que viajou muito, e que o samba é mais valorizado em outros lugares do mundo do que aqui. E também que no início da carreira ele era desvalorizado e tinha muito preconceito, ele era desmerecido, falavam coisas bárbaras, bem pesadas, porque o samba não veio de pessoas nobres, veio dos escravos, junto com a capoeira. Por isso acho importante todo mundo saber a cultura tão bonita que é o samba, de onde veio, como que veio, o que traz junto, das histórias e dos sentimentos, porque merece mais reconhecimento”, afirma Dóris, de 14 anos.
Com o início do isolamento social no Brasil em decorrência da pandemia de coronavírus, a escola levou para o meio digital as discussões sobre as questões raciais e promoveu uma série de debates virtuais. Uma oportunidade para envolver as famílias, a comunidade e outras escolas nas conversas.
Em uma dessas lives, conduzida pelo professor de Educação Física Thiago Vidal, ele compartilhou uma situação de racismo que sofreu recentemente, contou como se sentiu na hora e como reagiu à situação. “Quando um professor negro, como eu, aborda esse tema, o aluno se sente mais à vontade para contar o que acontece com eles, para desabafar, se abrir, pedir ajuda”, diz o professor.
Ronald de Souza, 12 anos, está no 6º ano e concorda com a importância de debater esses temas: “Na minha antiga escola não tinha conversa sobre isso, e é bom para aprender e não ser racista com os outros”.
Em relação à evolução do debate, o professor Thiago nota que as conversas sobre raça hoje em dia são diferentes das que presenciou no passado. Enquanto seu pai o ensinou a cortar o cabelo e andar “bem arrumado”, ele ensina a seus filhos e estudantes a não negarem sua cor, sua identidade e a se expressarem no mundo como bem desejarem.
“Temos que prepará-los, desde pequenos, para enfrentar o mundo, trabalhando a questão da autoestima, de se aceitarem e de acreditarem que, apesar da dificuldade imposta pela sociedade e a cultura, é possível que eles sejam o que bem entenderem. E eles poderem ver exemplos de pessoas negras que ascenderam socialmente é o ponto principal”, afirma Thiago.
O trabalho antirracista na Dorcelina Gomes da Costa, batizada em homenagem a uma merendeira da escola, é contínuo e permeia todas as disciplinas. Ao longo dos anos, vêm desenvolvendo uma série de projetos, como mediação de conflitos, conversas sobre quem são as pessoas que eles admiram e de valorização de suas famílias e raízes. Também fizeram peças de teatro e apresentações do coral sobre personalidades negras, convidaram autoras negras para lerem seus livros para os estudantes na escola, desenvolvem projetos de vida e estudam, por meio de uma atividade de cartografia, outros lugares da cidade que ainda não puderam visitar.
“Eles também têm uma atividade de estudo dirigido, em que pensamos juntos maneiras de organizar a rotina de estudo deles, porque o cotidiano dessas crianças e adolescentes muitas vezes envolve cuidar dos irmãos, da casa e trabalhar”, conta Verônica Lima, diretora da escola.
Ao mesmo tempo, a gestão busca acionar outros agentes do território e da Prefeitura para que esses estudantes tenham seus direitos garantidos e melhores condições de vida. “Tentamos escutar o que as famílias nos trazem, como elas lidam com essa situação e com o racismo. E vamos trabalhando a valorização deles, tentando resolver as questões que eles trazem. Mas não é uma postura de só resolver e despachar, é estar e ficar junto dessa família, e de verdadeiramente ouvi-los”, explica Elisabete Madureira, coordenadora pedagógica.
E para realizar esse trabalho, Dorcelina não está sozinha. A escola conta com o apoio da comunidade, de outros setores como a Assistência Social e a Saúde, forma professores na perspectiva antirracista e busca caminhos para mantê-los na escola por longos períodos, para que conheçam em profundidade o PPP, o território, os estudantes e as famílias.
“Quando assumimos a escola, em 2018, nós demos continuidade ao trabalho antirracista iniciado pela gestão anterior, então muitos dos resultados que temos hoje vêm da continuidade desse trabalho. Além disso, sempre construímos o planejamento para o ano junto com toda a comunidade escolar: professores, estudantes e famílias. Não funciona se trouxermos tudo pronto, é preciso que todos participem. E tem que ser feito com muito afeto, porque não existe educação sem afetividade. Só assim podemos criar um ambiente transformador, em que essas crianças possam se afirmar como negras, como cidadãs, e partir em busca do sonho delas”, afirma Verônica.
E a cada geração de estudantes que Dorcelina forma, a diretora nota que eles saem pelo portão um tanto diferentes de quando entraram por ali pela primeira vez. Ela conta que eles deixam a postura defensiva e mostram mais confiança em se expressar, se relacionar e, principalmente, em se aceitar.
Essa visão não é só da gestora. Em um vídeo gravado por ex-alunos, eles contam, a partir de suas próprias percepções, de que maneira Dorcelina foi importante em suas vidas. “Em uma formação com os professores mostramos esse vídeo para eles, para motivá-los, para pensarmos a educação que queremos e não nos esquecermos do papel transformador que a escola tem”, diz Verônica.
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