Diário da Tranca: socioeducandos publicam livro com memórias da privação de liberdade
Publicado dia 03/11/2022
Publicado dia 03/11/2022
“Sinto ódio por estar preso. Tristeza por estar longe da minha família, não poder abraçar meu pessoal. Quando estou na biblioteca, me sinto tranquilo”, escreveu M.V., 17 anos, em seu diário. Esse trecho foi publicado junto a outros relatos de 18 socioeducandos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) em Arcoverde, sertão de Pernambuco, no livro “Diário da Tranca“, publicado em 2021.
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“Foi uma experiência que nunca tinha tido, que tirou a gente de dentro da cela para poder interagir, para poder pegar num lápis e escrever o que se passava no dia dia. Isso ajudava a distrair e dava a sensação de que estávamos soltos, porque ficar só preso sem fazer nada deixa a gente indignado”, diz Rian Vicente, 18 anos, um dos autores da obra que agora em liberdade quer escrever outro livro.
Leia o livro “Diário da Tranca“, disponível de forma gratuita e virtual.
O projeto começou com a criação do “Clube Castelar” por Jedivam Conceição, pedagoga da instituição. Ao longo de um ano, fizeram leituras individuais e compartilhadas, assistiram a filmes juntos e realizaram várias oficinas: produção de artes, textos e discussões sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Outra leitura deu origem ao “Diário da Tranca”.
Jedivam sugeriu que eles começassem a escrever sobre o dia a dia deles na instituição, sobretudo porque durante a pandemia não podiam realizar atividades externas e nem receber visitas. A inspiração para os jovens foi a escritora Carolina Maria de Jesus e seu livro “Quarto de Despejo”.
“Eles não têm com quem conversar, compartilhar as várias questões que estão vivendo, então sugeri que escrevessem esse diário para poderem dizer o que não diziam de outra forma. Eles levavam para os quartos, escreviam, e compartilhavam comigo o que queriam. Além de poder conhecer como cada um vivenciou essa experiência, também descobri um caso de tortura, que foi denunciado”, conta Jedivam.
Em outubro de 2021, o livro foi lançado com as memórias dos adolescentes que quiserem participar. Os demais se interessaram por fazer artes para as capas do livro, que possui mais de 500 versões diferentes, todas feitas pelos meninos. Ao final dos textos, que são do gênero confessional, típico dos diários, a organizadora Jedivam conta um pouco sobre a vida dos adolescentes após a escrita do livro.
“Depois de saber que seria publicado, criamos a expectativa de que poderíamos sair de lá e ser chamados de escritores, não de ex-presidiários. Foi uma emoção saber que todo mundo saberia do livro e do que a gente passava lá dentro, com a experiência de cada um”, conta Rian.
Para Jedivam, que nunca imaginou que o Clube Castelar alcançaria o lado de fora das grades da Funase, o livro concretiza seu objetivo de mostrar para a sociedade a humanidade em cada um desses jovens.
“Queria dar visibilidade para a forma como eles vivenciavam essa experiência, que não fosse só sobre eles, mas junto com eles. Fico feliz que as pessoas possam vê-los de outra forma, principalmente em uma sociedade que os estigmatiza tanto e que discute a redução da maioridade penal”, pontua.