publicado dia 14/10/2022
Lutas, conquistas e descobertas: conheça a trajetória de três professores indígenas
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 14/10/2022
Reportagem: Ingrid Matuoka
Nas cidades e nos territórios indígenas, as professoras e professores indígenas compõem uma importante frente na garantia dos direitos dos povos originários, o que pode auxiliar na conquista dos demais.
Leia + Educação com equidade étnico-racial é estratégica para um Brasil mais justo
Isso porque é direito dessas crianças e adolescentes terem acesso a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, como determina o decreto 6861/09, e os professores que se encarregam dessa carreira em suas comunidades apoiam a garantia desse direito.
Ao terem condições de fazer isso, como formação adequada e escolas com infraestrutura e acesso a materiais pedagógicos específicos, esses educadores também contribuem para a formação de novas gerações mais conscientes de seus direitos, com a possibilidade de escolher seus caminhos futuros sem serem submetidos a violências, como o racismo e o apagamento de suas culturas, tão frequentes em escolas não indígenas.
Para celebrar a importância de seu papel na sociedade, o Centro de Referências em Educação Integral ouviu a trajetória de três educadoras(es). Conheça suas histórias:
Embora seja garantido por lei, na Constituição Federal, nem todos os territórios indígenas possuem todas as etapas da Educação Básica. Além de uma violação de direito, isso força crianças e adolescentes a situações de vulnerabilidade e de trabalho infantil para poderem continuar estudando. “Quando terminei a 4a série na aldeia, aos 9 anos, fui para uma cidade maior onde tinha escola. Mas, para isso, tinha que trabalhar para me sustentar”, conta Ana Maria de Lima sobre uma realidade que se multiplica pelos territórios indígenas e rurais do Brasil.
Para que outras crianças e adolescentes não precisassem mais fazer o mesmo, ela se uniu às lideranças e professores(as) de sua comunidade para reivindicar o Ensino Fundamental 2 e Médio em seu território Tumbalalá, que fica ao norte da Bahia, às margens do Rio São Francisco.
Em 2007, começaram a luta pela ampliação da Escola Municipal Santo Antônio, para que ela pudesse abrigar as demais etapas. “Temos que lutar para garantir o que já é nosso direito por lei, porque está na Constituição Federal de 88, quando conquistamos muitos direitos, mas não deveríamos precisar brigar por isso, a lei tinha que ser cumprida simplesmente. Depois de muitas lutas, muitas viagens da nossa liderança até Salvador para reuniões e debates, conseguimos o Ensino Fundamental 2”, relata Ana Maria.
O grupo de professores e líderes saiu, então, pelas comunidades para contar a novidade e incentivar que as pessoas matriculassem seus filhos na nova escola. “Lembro de uma mãe que ficou muito emocionada porque ela tinha uma filha com deficiência e estava preocupada que a menina fosse vítima de preconceito na cidade. Hoje ela está terminando a graduação em Agronomia”, celebra Ana Maria.
Mas houve também alguma resistência por parte de famílias que se preocupavam com a qualidade do ensino que seria ofertado. “Garantimos que nossa proposta era mesclar o local e o global e que os estudantes também seriam preparados para disputar os espaços fora da aldeia que desejassem, como as universidades”, afirma a educadora.
Em 2009, conseguiram o Ensino Médio como extensão de outra escola um pouco mais próxima, e foi só em 2014 que a etapa foi garantida no território. Desde 2007 em sala de aula, Ana Maria comemora as várias histórias de sucesso dos estudantes que já passaram pela escola, como os que concluíram os estudos e permaneceram no território contribuindo com sua comunidade, até os que seguiram o caminho do Ensino Superior.
Você sabe o que é o Marco Temporal? Aguardando para ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF), o Marco Temporal visa estabelecer que as populações indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam na data de promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988, embora estivessem por todo o território desde antes da chegada dos europeus e, de lá para cá, tiveram suas terras tomadas e populações dizimadas.
“Já passamos por tantas coisas e hoje, dentro da nossa escola, tem professoras que já foram minhas alunas, tem jovens se formando em Engenharia Mecânica, Direito, Psicologia. Não tenho palavras para descrever a felicidade e o orgulho que eu sinto”, diz Ana Maria.
A professora também inclui no rol de vitórias a mudança que vem ocorrendo em torno da compreensão de que o Brasil não foi descoberto, mas invadido, porque tratava-se de um território já amplamente habitado, e o fato de que as escolas indígenas têm conquistado cada vez mais professores indígenas. “Senão, como ele vai passar a empolgação com a nossa cultura e com o pertencimento?”, questiona.
As conquistas até aqui foram imensas, mas a luta, infelizmente, não pode cessar. “Temos muitas questões com os nossos territórios, como o Marco Temporal, com a permanência da nossa cultura e realização dos nossos rituais, e desde 2018 nunca mais tivemos formações, porque esse governo é omisso e traz retrocessos para as conquistas que nós e todas as classes minoritárias tivemos. A luta não para”, diz Ana Maria.
Ser professora não era a primeira opção de Herika Fabiola Barros de Souza Oliveira do Valle, que desde os 15 anos mora em Boa Vista (RR). Recém formada no Ensino Médio, ela queria ser psicóloga, mas o curso não existia no Estado à época, então enveredou-se para a História e graduou-se pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). “Eu até fazia estágio em uma escola, mas não me via como professora”, conta.
Pouco tempo depois, soube de um programa do governo federal Proformação que tinha uma vaga para professores indígenas. Foi então que começou a reconhecer em seus desafios de docente os mesmos que viveu enquanto estudante de uma escola do interior: faltam materiais, o acesso à escola é difícil, os professores precisam de mais formação.
“Comecei a perspectivar as possibilidades de tentar promover melhorias, de pensar no coletivo, de compartilhar o que tenho e de aprender com os outros. Não cabe mais tanto egoísmo e individualismo no mundo, precisamos compartilhar os saberes, somar forças. Foi assim, no dia a dia, com as situações que me fizeram pensar e repensar, mudar de estratégia e amadurecer, que me fiz professora”, relata Herika.
“Como diz Paulo Freire, não existem saberes maiores ou menores, mas diferentes, e eu ensino, mas também aprendo”, diz Herika.
Hoje, ela leciona História e Sociologia para o Ensino Médio na EE Ana Liboria, em Boa Vista (RR), é membro da Rede Conectando Saberes e educadora há 20 anos. “Para quem não queria ser professora, até que tá bom”, brinca.
Indígena da etnia Wapichana, Herika ressalta que sua presença em uma escola da capital de Roraima contribui para quebrar o estereótipo de que os indígenas vivem só na floresta e não têm direito, ou desejo, por uma formação no Ensino Superior.
“Isso é o que está no imaginário de muitas pessoas e vem do nosso processo de colonização, por isso sempre trabalho com meus estudantes a questão das identidades, das diversidades e das várias culturas indígenas que existem no Brasil. Nessa troca, todos ganham”, destaca a professora que leva a sério o que diz.
Foi com uma estudante trans, por exemplo, que aprendeu que ela também poderia mudar seu sobrenome no documento oficial para resgatar o de sua avó indígena, Ariramba, processo que pretende dar início em breve. “Como diz Paulo Freire, não existem saberes maiores ou menores, mas diferentes, e eu ensino, mas também aprendo”, diz Herika.
Toda a trajetória escolar de Valcenir Tibes se deu na escola onde agora ele voltou para lecionar e contribuir para que as novas gerações tenham uma educação diferente da sua. Quando criança, não teve professores indígenas que falassem Guarani e nem um currículo diferenciado, atento à valorização da cultura local.
“Gostaria de ter aprendido mais sobre a minha cultura, sobre outros povos, porque éramos obrigados a saber tudo o que era de fora e nada a gente, além de ter que escrever só em Português. Na época da colonização também era assim, os povos indígenas não podiam falar em suas línguas ou eram castigados. Então hoje sou professor pela escola que gostaria de ter tido quando era estudante”, diz Valcenir.
Foi a luta das lideranças, pais e mães da comunidade que garantiu a eles seu direito constitucional por uma educação escolar diferenciada, específica e bilíngue. De volta à EE Indígena Guarani Gwyra Pepo, em Barragem (SP), para lecionar História e Geografia para o Ensino Fundamental 2 e Médio, Valcenir comemora o fato de que agora as crianças são alfabetizadas em Guarani, só começam a aprender o Português por volta dos 8 anos de idade e têm sua cultura valorizada entre os vários saberes que a escola apresenta. Agora, a escola luta pelo reconhecimento do Estado das diretrizes curriculares elaboradas pela comunidade.
“É o que me faz olhar mais para a minha comunidade, para o futuro das crianças, porque fico preocupado em perder as nossas práticas. Os Guarani estão há mais de 500 anos em contato com os não-indígenas e já perdemos muito. Mas estamos fortalecendo nossas músicas, nossos valores, o plantio, as rezas e o artesanato”, relata Valcenir que, entre idas e vindas, está em sala de aula há 10 anos.
Para além da questão cultural, o educador também preza por estabelecer outra relação com os estudantes e as famílias. Hierarquias rígidas, padronizações e punitivismo, por exemplo, não fazem parte de sua sala de aula, e toda a comunidade está em constante diálogo para pensar nos objetivos dessa educação e apoiar os professores.
“Eles sabem que eu não sou o sábio daqui, que eles também sabem e me ensinam. Quando você é professor em uma aldeia, você é professor o tempo todo”, diz Valcenir.
“Sempre falo que nós não somos máquinas para fazer tudo igual, então cada um tem seu tempo de aprender, hoje estou bem e amanhã posso não estar. Tudo isso tem que ser considerado dentro da nossa aldeia. Com isso, acho que fui lidando melhor com as crianças e hoje elas não tem mais tanto medo de errar, de perguntar. Somos simplesmente bons amigos que tem momentos de brincar, de estudar. Eles sabem que eu não sou o sábio daqui, que eles também sabem e me ensinam. Quando você é professor em uma aldeia, você é professor o tempo todo”, diz Valcenir.
Na concepção da educação escolar indígena, a escola é mais um espaço educativo, junto a todo o território e a comunidade, como é fundamental para todas as escolas do país. Assim, as crianças aprendem o tempo todo com os mais velhos, com os pares, nas atividades cotidianas e, também, na sala de aula.
“Na escola as crianças aprendem questões políticas internas, externas, a cultura de outros povos, o preconceito, o racismo, para que sejam conscientes, não apenas para decorar e passar na prova. Tem que servir para a nossa vida e para os desejos de cada estudante”, afirma.