publicado dia 07/08/2018
O gargalo do Ensino Médio: em busca da escola com sentido para as juventudes
Reportagem: Thais Paiva
publicado dia 07/08/2018
Reportagem: Thais Paiva
No ano de 2016 um movimento se alastrou pelas escolas de todo o País. “Escola ocupada”, “A escola é nossa” e outros cartazes estampando frases de resistência erguiam-se sobre os muros das escolas contra o Teto de Gastos, o Escola sem Partido e a reforma do Ensino Médio, no que ficou conhecida como a primavera secundarista.
Leia + O que os alunos esperam da reforma do Ensino Médio
Passados dois anos, as lutas de estudantes e educadores permanecem as mesmas. O Ensino Médio, um dos gargalos históricos da educação brasileira, ainda amarga para encontrar caminhos para a construção de uma escola que dialogue com os anseios, identidades e interesses das juventudes brasileiras e ajudem a reverter os indicadores da etapa.
Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias irá abordar como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.
Desde a primeira edição do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), de 2005, o Ensino Médio apresenta o pior resultado entre as etapas de ensino avaliadas. A evasão é outra grande questão: a cada ano, um em cada quatro jovens entre 15 e 17 anos abandona os estudos.
Segundo o relatório “Education at a Glance 2017”, disponibilizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 40% da população brasileira entre 25 e 34 anos não possui o Ensino Médio completo.
Para os especialistas ouvidos pelo Centro de Referências em Educação Integral, longe de ser uma panaceia, a reforma sancionada pelo presidente Michel Temer (PMDB) em fevereiro de 2017 deve contribuir para o agravamento das desigualdades educacionais e para um olhar fragmentado da Educação Básica, aprofundando a ruptura entre o Ensino Fundamental e Médio e prejudicando o desenvolvimento integral dos sujeitos.
“Na ausência de uma política clara para as juventudes você acaba tendo remendos. Além da evasão, outro risco da reforma é jogar ainda mais jovens para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Educação não se resolve com intervenções imediatistas, mas em longo prazo, em diálogo com as escolas, famílias, redes, universidades”, pontua Wagner Santos, coordenador do Núcleo de Juventudes do Cenpec. “O Brasil é um país muito diverso e essas identidades precisam entrar na escola para que os alunos atribuam sentido à aprendizagem”, acrescenta.
Para a historiadora e educadora Lilian Kelian, o principal ponto de apoio sobre o qual se fundamentou a reforma é o consenso amplamente partilhado de que o Ensino Médio precisa ser reestruturado. “Esse consenso já se encontra de certa forma enunciado em diversos documentos do Ministério da Educação (MEC) e na estruturação de programas que fomentam iniciativas inovadoras nas escolas. Assim, elementos como a possibilidade de individualizar partes do percurso formativo dos estudantes, integração da formação profissional a formação propedêutica são elementos já presentes no debate educacional há pelo menos uma década”, conta.
Apesar do consenso quanto à necessidade de repensar a identidade da etapa, a reforma feita às pressas e sem diálogo, por meio de uma Medida Provisória, acabou intensificando a crise. Isto porque diversos setores da sociedade brasileira com conhecimentos, experiências e proposições acumulados não encontraram espaço democrático na sua elaboração. “Também há um acúmulo das próprias políticas públicas federais que parece ter sido pouco aproveitado. Afinal, o que aconteceu com o Programa Ensino Médio Inovador? A ampliação do Programa Mais Educação para o Ensino Médio? O recém-criado Inovação e Criatividade na Educação Básica?”, questiona Lilian.
Lilian Kelian: “Ainda estamos dentro de uma lógica de organização do conhecimento que parece dialogar pouco com as intenções juvenis”
Paulo Carrano, do Observatório Jovem da UFF, é mais enfático em sua leitura. Para ele, não existe a possibilidade de desenvolvimento integral dos alunos e da escola pública como espaço de formação cidadã enquanto a reforma não for revogada. “Essa reforma nasce em um contexto muito grave que é a quebra do pacto constitucional do país. O Ensino Médio se expandiu nos últimos anos, trazendo um público mais diversificado e popular, e não se preparou para isso. Era necessário ampliar as ofertas educativas de modo a termos um aluno pleno do ponto de vista ético, acadêmico, político. Mas, no lugar disso, o que foi feito foi reduzi-las. Era preciso ajudá-lo a construir sua identidade profissional e não oferecer meramente uma formação técnica”, explica.
Outra questão que se coloca é a própria conectividade entre o que será oferecido no Ensino Médio e as necessidades, desejos e repertório dos jovens. Mesmo que os sistemas de ensino sejam capazes de oferecer vários itinerários para todas as escolas da rede, não está garantido, de fato, que os interesses juvenis estarão realmente integrados ao currículo, diz Lilian.
“Ainda estamos dentro de uma lógica de organização do conhecimento que parece dialogar pouco com as intenções juvenis. É comum que as soluções para individualização dos percursos formativos se estruturem como atividades eletivas, aquelas que os estudantes universitários chamam ironicamente de “optatórias”, num neologismo que mistura optativa e obrigatória.”
Também esteve envolta em polêmicas a apresentação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio, entregue pelo MEC em abril ao Conselho Nacional de Educação (CNE). O documento determina, entre outros pontos, que 60% da carga horário seja dedicada aos conteúdos prescritos no texto e 40% aos itinerários formativos optativos. Além disso, define apenas Matemática e Português como disciplinas.
“Essa ideia de que Português e Matemática são a panaceia de todas as questões partem do princípio de que o jovem dominando esses dois conteúdos estará pronto para o mercado. Isso é um equívoco. O que vemos é que precisamos de um jovem que tenha capacidade crítica, que seja criativo, que tenha visão ampla e capacidade interpretar o mundo”, diz Wagner, do Cenpec.
Para saber mais sobre os desafios e conhecer experiências inspiradoras da última etapa da Educação Básica, leia o especial Equidade e Educação Integral no Ensino Médio do Centro de Referências em Educação Integral.
Na análise de Lilian, o que parece mais problemático é que a descrição das competências na Base se restringiu às partes aplicadas do conhecimento, com exceção apenas das competências de Língua Portuguesa. “Domina o documento uma visão técnica e instrumental do conhecimento que pode vir a ser uma limitação para o pleno desenvolvimento dos jovens e em especial, no que diz respeito ao exercício da cidadania.”
Para Fábio Meirelles, coordenador de educação da OI Futuro, o debate sobre a Base foi influenciado pelo da reforma. “Considero um erro da gestão federal, primeiro, apresentar a reforma da forma como foi apresentada – por meio de um Decreto – para depois submeter a Base a ela. Faltou também considerar o Plano Nacional de Educação (PNE), que é nosso norteador democrático de médio e longo prazo. O PNE precisa ser considerado a grande referência para a implementação das políticas públicas educacionais”, reforça.
A partir das experiências que presencia no NAVE – Núcleo Avançado em Educação, Fabio aponta o protagonismo juvenil como um catalisador potente de mudanças. “Desde a ocupação do Nave Rio, em 2016, começamos a promover estratégias de gestão democrática, abrindo mais espaços de interlocução entre equipe gestora, corpo docente e os estudantes. Nesse sentido, temos buscado dar mais sentido para os processos educacionais, reafirmando suas intencionalidades pedagógicas”, conta.
Foi assim que surgiu dentro da escola a organização de um movimento negro, de um grupo editorial LGBT, um coletivo feminista, entre outros. Outros marcadores que Fábio destaca como diferenciais do NAVE são professores valorizados, pesquisadores, dedicados e provocados a inovar.
O aluno do Ensino Médio quer professores mais motivados e uma escola mais integrada – caminho que perpassa sua abertura para os debates da sociedade
No diversos estudos realizados pelo Cenpec sobre as juventudes brasileiras, Wagner conta que um consenso se sobressai: o aluno do Ensino Médio quer professores mais motivados e uma escola mais integrada – caminho que perpassa sua abertura para os debates da sociedade, abordando questões étnico-raciais, de gênero, entre outras.
Tais facetas, no entanto, se veem ameaçadas com a marcha conservadora sobre as escolas, extremada no projeto Escola Sem Partido, que coíbe a liberdade de ensino e aprendizagem ao censurar a abordagem em sala de aula destes e outros temas próprios do mundo contemporâneo.
“Por que o Escola Sem Partido está disputando mentes no seio da periferia? Porque em territórios vulneráveis você encontra violência, ausência de professores, de apoio, então esse discurso ganha força. Pensar educação é também pensar em conflito. Só que esse conflito precisar ser visto na perspectiva democrática ao, inclusive, abarcar a pautas e valores com os quais não concordamos”, diz Wagner.
Paulo Carrano recorre a um questionamento do cineasta italiano Roberto Rosselini para exprimir sua opinião. “Ele indagava ‘não lhes parece estranho educar para a liberdade em condições de aprisionamento?’ A agenda conservadora não toca no papel da escola contemporânea que é preparar para um mundo complexo e contraditório. Para construir uma sociedade republicana e democrática precisamos da escola pública e da liberdade. E para educar para a liberdade a escola precisa ser um espaço da liberdade”, finaliza.