publicado dia 25/06/2015
Trabalhar as emoções é condição para uma educação integral
Reportagem: Suzanna Ferreira
publicado dia 25/06/2015
Reportagem: Suzanna Ferreira
A palavra “emoção” deriva do latim, emovere, e significa “mover para fora”. Já a inteligência emocional é um conceito muito mais moderno, oriundo da psicologia, e define a habilidade de reconhecer os próprios sentimentos e os dos outros, o que envolve diversas competências, entre elas, a empatia.
Uma frase do educador português Agostinho da Silva sobre essa capacidade diz: “Entre os seres inteligentes, a admiração mútua reforça a unicidade e a independência”. Agostinho, falecido em 1994, defendia uma escola sem divisões de séries e, dessa forma, projetava um espaço fértil e sem barreiras para o desenvolvimento integral da criança.
Entre um dos fundamentos da educação integral, há o reconhecimento de que o processo educativo deve ir além dos conteúdos presentes no currículo tradicional; a vida é entendida como um percurso fluído de aprendizado. Mas se a existência é uma grande escola, por que as outras dimensões da vida do ser humano ainda hoje são excluídas em alguns processos escolares?
Segundo a pedagoga Silvia Colello, docente nas áreas de Licenciatura da Linguagem e Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), há uma tradição escolar focada no ato de transmissão de conhecimentos. Essa prática vê o currículo como uma estrutura para somar conteúdos. “Os professores trabalham com um anseio desesperado de atender às demandas da sociedade por avaliação, como os vestibulares, assim, não sobra espaço para uma formação atrelada ao desenvolvimento da consciência humana”, diz.
Para Colello, uma educação integral também inclui o trabalho com as referências emocionais que uma criança vivencia e educar nesse sentido não é apenas papel da família, mas uma tarefa que deve unir comunidade, escola e gestão pública, em suma: de toda a sociedade. “Se esperarmos que o indivíduo comece seus estudos quando estiver com todos os valores humanos formados, podemos fechar a escola então”, polemiza.
De acordo com Tania Paris, fundadora e presidente da Associação pela Saúde Emocional de Crianças (ASEC), a sociedade ainda recebe as pressões de uma forma abrupta, pois muitas vezes não há tempo de assimilar as próprias reações.
Nesse aspecto, as dificuldades atuais que a escola enfrenta para entender as diversas dimensões do ser humano podem ter sido geradas há algumas gerações. Para Tania, até pouco tempo não existia educação emocional nas escolas e os adultos de hoje aprenderam a lidar com a vida emocional da mesma maneira que os pais e professores tratavam no passado.
Como o objetivo de desenvolver a empatia e a descoberta das próprias reações diante das mais variadas situações, o programa Amigos do Zippy, de responsabilidade da ASEC, apresenta um trabalho de vivência e reflexão diante de emoções simples e complexas. O projeto pode ser experienciado em escolas públicas e privadas, nos 1º e 2º anos do ensino fundamental, faixa etária fundamental para o desenvolvimento emocional do indivíduo. Em algumas escolas ele é inserido na própria grade curricular. As aulas duram um ano e a frequência indicada pela ASEC é de um encontro por semana.
Durante 25 aulas, divididas em seis módulos, o inseto Zippy, um bicho-pau, é o personagem principal desse processo, que pode ser feito por meio de uma roda de conversa, ocasião citada pelo educador Paulo Freire como uma forma de perceber o que o outro sente e pensa e, assim, adquirir novos pontos de vista.
As crianças, amigas do bicho-pau, expressam suas reações em diversas situações, gerando uma identificação nos alunos participantes, o que estimula a empatia como reconhecimento dos próprios sentimentos.
Uma extensão do Amigos do Zippy é o Amigos do Zippy em Casa, que visa a aproximar os pais nesse processo de desenvolvimento de emoções. Por meio de sugestões de diálogos e brincadeiras simples que podem ser feitas até dentro do carro, no trânsito, o Amigos do Zippy em Casa leva os mesmo temas que as crianças estão vivenciando em sala de aula. Segundo Tania, como os pais não tiveram essa educação emocional, eles aprendem junto com os seus filhos.
A ASEC foi criada por um grupo de voluntários do CVV (Centro de Valorização da Vida), e atua no Brasil desde 2004. Mais de 6500 educadores e 220 mil crianças em 45 municípios já participaram. Anualmente, mais de 500 escolas participam.
Para qualificar o trabalho nas escolas com as crianças, é necessário também formar seus docentes para tal tarefa. Por isso, um dos pilares do trabalho da ASEC é voltado à formação docente. O objetivo é que o professor vivencie os mesmos exercícios que ele irá desenvolver com as crianças em sala de aula. “Ele não precisa ter perfeição no trato com seus sentimentos, pois durante a formação ele vai trabalhar com o seu próprio desenvolvimento pessoal”, narra Tania.
Todos os professores ou coordenadores pedagógicos participantes passam por uma formação básica e continuada. Na formação básica, com duração de 16 horas, o educador aprende a fortalecer estratégias para mediação do conteúdo, de forma a garantir a vivência autônoma das crianças.
Na formação continuada, o grupo possui quatro encontros com duração de quatro horas, e além do acompanhamento e preparação dos módulos, os professores são estimulados a trocar suas experiências com seus colegas, o que intensifica assim, a sua própria vivência com os desafios propostos.
Já no trabalho estendido aos pais, há três encontros que acontecem ao longo do ano, com duração de duas horas, cujo objetivo é sensibilizá-los sobre os temas trabalhados na escola pelos filhos, além de estimular o relacionamento e diálogo com outros pais e com a escola.
Outras Rodas de Conversa são desenvolvidas em escolas de tempo integral da rede estadual em São Paulo. O projeto Cuca Legal, formado por uma equipe multidisciplinar, tem parceria com o Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e envolve 17 escolas estaduais de período integral em São Paulo. O projeto visa a uma aprendizagem sócio emocional, como forma de evitar problemas dessa natureza no futuro.
Além de uma formação inicial com os professores durante 8 horas, onde são trabalhados os conceitos e objetivos do projeto, o programa acontece de forma integrada ao currículo, em 8 intervenções com durações de 2 horas. Esses encontros podem ser distribuídos em aulas de 1 hora cada, uma vez por semana.
Segundo Alcione Marques, coordenadora das intervenções junto às escolas de período integral da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, no programa são desenvolvidas habilidades sociais na comunicação e na resolução de problemas, com o foco em ouvir atentamente o outro, utilizando jogos e materiais ilustrativos.
A falta de um currículo que abarque essa dimensão emocional nas escolas tem como consequência a falta prevenção de casos de bullying, assédios e agressões, bem como a falta de reflexão acerca de fatos dessa natureza que já tenham ocorrido entre os estudantes. Os recentes casos de violência de gênero em algumas escolas de São Paulo mostram a necessidade de se incluir estas dimensões dentro dos processos educativos, envolvendo inclusive a comunidade onde a instituição está inserida.
“Se o nosso sonho é uma sociedade democrática, não podemos mais nos conformar com o grau de preconceito em relação às minorias. A gente não deve responder a essas violências só na hora de apagar o fogo, precisa haver um trabalho de prevenção”, afirmou Silvia Colello.
Para a psicopedagoga, os trabalhos que acontecem nas escolas com o objetivo de reverter essas discriminações na sociedade ainda se dão de forma tímida, diante a tantas necessidades que surgem de discutir esses temas. “Não há um pressuposto enraizado de que a ação educativa deve ser articulada com a responsabilidade nas ações e emoções”, pontua.
Durante os trabalhos do programa Amigos do Zippy, oferecido pela Asec, o olhar de respeito à diversidade está presente desde os primeiros contatos das crianças.
“Através do reconhecimento das emoções percebemos que os outros passam pelas mesmas coisas que nós. Raiva, medo, timidez, alegria… Como nós reagimos é o que nos torna singulares. O ser humano precisa conquistar essa percepção desde cedo, assim ele terá maturidade para respeitar as diferenças, e, por conseguinte, a diversidade”, contextualiza Tania.
Ainda segundo ela, um dos enfoques dos professores é exemplificar, através de brincadeiras, que o contato com os sentimentos não devem prejudicar ninguém, nem a si próprio. “O aprendizado é adquirido pelas próprias crianças, em suas vivências; assim, o conhecimento se fixa, já que foram eles que fizeram essas descobertas”, levanta.
De acordo com a fundadora da Associação, assim também acontece em relação à diversidade. “Quando a criança percebe que somos todos diferentes, e que podemos conviver com a diferença, ela amplia o seu mundo pois constata que é mais rico conviver dessa forma”, finaliza.
Outro trabalho feito para despertar a consciência à diversidade é um jogo desenvolvido por Silvia Colello, em parceria com o Instituto André Franco.
Silvia estava desenvolvendo uma pesquisa sobre situações de conflito na escola e acabou percebendo que a melhor forma de levar esses conteúdos para as crianças era em formato de um jogo digital. Para montá-lo, Silvia passou muitas horas em algumas escolas observando os conflitos relacionais e pedagógicos. Então ela fez um protótipo simples para crianças de 6 a 10 anos e em seguida o levou para uma empresa desenvolvedora de jogos, o Studio ZYZ.
O jogo que ainda não tem previsão de ser comercializado, possui um programa de 50 dilemas, que são situações que deverão ser resolvidas pelas crianças, incluindo temas como conflitos, emoções e diversidade, entre outros. As crianças escolhem incorporar um personagem, enquanto se relacionam com os outros durante os dilemas apresentados.
Tania lembra de algumas histórias que refletem o desenvolvimento emocional das crianças envolvidas no programa Amigos do Zippy.
“Há o caso de uma mãe que havia recebido uma notícia terrível. Ela ficou extremamente abalada, se trancou no banheiro e começou a chorar. Enquanto isso, sua filha começou a bater na porta, e depois de muita insistência conseguiu que a mãe saísse do banheiro. Questionada pela filha sobre o que havia acontecido, a mãe se negou a responder, ao que a criança responde: se não consegue dizer, desenhe”.
Tania conta que só assim a mãe começou a falar com a criança. “A menina entendeu que nem todo mundo consegue expor seus sentimentos, mas na tentativa de ajudar compartilhou um instrumento dela, desenvolvido na escola”, finaliza.