publicado dia 27/02/2018

“Se meu filho com deficiência está na escola, quem não é para estar?”

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Em 1997, nascia David, terceiro filho de Keila Leite Chaves, 50 anos. Em decorrência de uma deficiência não diagnosticada que o impedia de falar e andar, seus primeiros anos juntos estiveram circunscritos, praticamente, ao ambiente da casa e às idas e vindas de hospitais e centros de fisioterapia de Fortaleza, Ceará. Uma rotina tão árdua quanto solitária.

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Em uma destas muitas consultas, no entanto, uma pergunta deixada pela profissional de saúde mudaria tudo: “o garoto frequenta a escola?”. “Isso nunca tinha passado pela minha cabeça”, lembra Keila.

Não era de se estranhar. Quando David nasceu, o médico informou aos pais que o menino viveria “quase como um vegetal” e que seria surpreendente que passasse dos 7 anos. O fatalismo do diagnóstico tinha afastado de Keila toda e qualquer expectativa de escolarização do menino.

O questionamento feito pela fisioterapeuta, no entanto, veio como um sopro de otimismo e fez com que Keila partisse em busca da matrícula para seu filho, à época com 5 anos.

“Eu não sabia que as crianças com deficiência tinham direito de estar em uma escola regular. A gente não se reconhecia nem como sujeito, quem dirá de direito”

A princípio, a mãe buscava uma escola específica, que atendesse somente crianças com deficiência. Não esperava, porém, deparar-se com inúmeras recusas, inclusive, entre as particulares. “Diziam que ele não estava preparado ou que a condição dele era grave demais, praticamente selecionando as deficiências que aceitavam ou não”.

O desafio das primeiras experiências

Quando enfim encontrou uma escola que matriculou seu filho, mais uma decepção. Os professores pareciam temer as crianças com deficiência e os pequenos ficavam em uma sala sem janelas, trancados com chave. A única atividade que recebiam para fazer era olhar revistas espalhadas pelo chão.

Trabalhando como voluntária ao lado dos professores, Keila tentou então transformar o cenário. “Eu ia fazer uma atividade com os meninos e a professora ficava dizendo que não adiantava porque a criança não sentava. Eu respondia ‘não senta hoje, mas vai sentar um dia’, e que ninguém ali estava com pressa”.

A Declaração de Salamanca trata dos princípios, políticas e práticas em educação especial e foi aprovada em 1994 na Conferência Mundial de Necessidades Educacionais Especiais, na Espanha. O documento decreta que todas as pessoas com deficiência têm direito de ingressar no ensino regular. “Escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos”, diz um trecho do documento.

Em outro momento, quando chegou um garoto que tinha medo de ficar na escola, longe da mãe, teve a ideia de adaptá-lo aos poucos ao ambiente. No primeiro dia, ficou 15 minutos, no outro, 30, até permanecer o dia inteiro.

A experiência serviu, ao menos, para que Keila conhecesse a realidade de outras famílias e ganhasse força para unir-se a outras mães por uma educação de qualidade para todos. Foi também nesse período que ela conheceu a Declaração de Salamanca.

“Eu não sabia que as crianças tinham direito de estar em uma escola regular. A gente não se reconhecia nem como sujeito, quem dirá de direito”. Das 17 páginas desse documento, ela fez o seu norte: “meu filho vai para uma escola regular pública”.  

A busca por uma escola pública inclusiva

Keila, ao lado de outras mães, alugou a duras penas uma casa no bairro para acolher seus filhos enquanto não conseguiam a matrícula na rede.

Lá, as crianças da comunidade com deficiência ou não passavam a tarde fazendo atividades, aprendendo e tendo aulas como natação e reforço escolar.  Assim nascia, em 2003, o Centro de Apoio a Mães de Portadores de Eficiência (Campe).

O local não tinha o intuito de substituir a escola, mas permitir que muitas mulheres voltassem a trabalhar e que as crianças convivessem entre si. 

Para além dessas funções práticas, a casa serviu, sobretudo, para concentrar forças e dar início a um movimento de pressão pela garantia de direitos, fazendo mobilizações pela cidade, com distribuição de panfletos informativos sobre os direitos da pessoa com deficiência.

“Levávamos nossos questionamentos e cobranças do que queríamos para a educação”. O barulho chamou a atenção da imprensa e de organizações não-governamentais de direitos humanos, como o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), que fortaleceu o movimento.

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Desfile pelas ruas de Fortaleza (CE) de crianças com deficiência, organizado por Keila

Crédito: Acervo pessoal

Lugar de criança com deficiência é na escola

A mobilização surtiu efeito. “Em 2005, estávamos matriculando 25 pessoas – crianças, adolescentes e adultos – com deficiência na escola do bairro”, relembra Keila.

A chegada, no entanto, não foi tranquila. “A direção criava mecanismos para tentar tirar a gente, para que estes alunos não se adaptassem, geravam intrigas entre as famílias, mentiam sobre o comportamento das crianças”, conta Keila. Certa vez, uma professora chegou a pedir aos alunos como tarefa de casa uma redação sobre como as crianças com deficiência atrapalhavam as aulas.

Mas ao invés de desistir, aos poucos, o grupo de mães foi dialogando com os demais familiares, fazendo reuniões e desmanchando desentendimentos. “Enquanto a gente não sabia que era nosso direito, saía calada. Mas depois ninguém segurava”.

Como fruto dessa luta, não só a escola, mas toda a comunidade começou a adaptar-se como os ônibus com bancos e espaços para cadeirantes e uma frota com elevador que passaram a circular.

“O meu filho pertence ao bairro. Se eu estivesse enclausurada, com carro me pegando na porta para me levar a uma instituição especial, meu filho pertenceria só a mim. Não teria ônibus acessível, não teria escola regular matriculando deficientes”, diz Keila.

Das aprendizagens imensuráveis

David, hoje com 21 anos, está concluindo o terceiro ano do Ensino Médio. A mãe conta que ele presta atenção em todas as aulas. “Ele está aprendendo. O quê? Nós é que ficamos na deficiência de saber”.

A mãe lembra de um início de ano letivo em uma escola nova quando, durante o recreio, as crianças cercaram Keila e David, cheias de perguntas. Queriam entender como ele comia, como andava, por que não falava.

Jornal local noticia o ingresso de David na escola. Na foto, Keila, David e seu irmão mais novo celebram a conquista

Crédito: Acervo pessoal

“Fui contando para eles, explicando quem é o David. Falei que ele adora saquinhos de biscoito. E adivinha? Começaram a guardar os saquinhos e levar para ele”.  

Outra situação memorável da vida escolar de David foi quando, em uma aula sobre paródias e músicas, o professor pediu para que as crianças cantassem. David cantou, em murmúrios, mas cantou. Um pequeno trecho da cantiga de roda “Atirei o pau no gato”, demonstrando não apenas que estava ali, consciente, o tempo todo, mas também aprendendo. Foi a prova do que Keila sabia desde o princípio: todos são capazes.

“Quando veem meu filho com deficiência na escola e perguntam se ele está mesmo participando da aula, se ele saber ler e escrever, eu digo que não, mas que a aprendizagem vai muito além de saber essas coisas”, conta. “Se ele está na escola, quem não é para estar?”.

Hoje, o Centro de Apoio a Mães de Portadores de Eficiência (Campe) é uma das instituições de maior referência no que diz respeito à educação inclusiva e à luta pelos direitos fundamentais da pessoa com deficiência. Mérito de Keila e tantas outras mães que, ao logo dessa jornada, viram também suas vidas serem transformadas.

“A inclusão muda a vida do cuidador, das pessoas em volta, das mães desempregadas, que foram abandonadas pelos maridos quando souberam que teriam um filho com deficiência. E ao mudar a comunidade, muda a maneira como a sociedade os vê e abre portas”, finaliza.

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