publicado dia 02/10/2017

Os desdobramentos do ensino religioso confessional nas escolas públicas

Reportagem:

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta quarta-feira 27, que o ensino religioso nas escolas públicas pode ter natureza confessional, ou seja, que as aulas podem seguir os ensinamentos de uma religião específica.

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O STF julgava uma Ação Direta de Inconstitucionalidade da Procuradoria Geral da República (PGR). Proposta em 2010 pela então vice-procuradora Déborah Duprat, a ação entendia que o “ensino da religião católica” era privilegiado no País em detrimento de outras crenças, o que configuraria uma afronta ao Estado laico, garantido em Constituição.

O STF, por 6 votos a 5, contrariou a tese e entendeu que é possível ensinar crenças específicas sem violar a laicidade do Estado.

Pela tese vencedora, o ensino religioso nas escolas públicas como disciplina do Ensino Fundamental (para alunos de 9 a 14 anos de idade) deve ser estritamente facultativo, sendo ofertado dentro do horário normal de aula. Fica autorizada também a contratação de representantes de religiões para ministrar as aulas, como bispos, padres e pastores. O julgamento não tratou do ensino religioso em escolas particulares, que fica a critério de cada instituição.

A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, desempatou o julgamento argumentando que não consegue “vislumbrar nas normas autorização para o proselitismo ou catequismo. Não vejo nos preceitos proibição que se possa oferecer ensino religioso com conteúdo específico sendo facultativo”.

Dela discordou o decano da Corte, ministro Celso de Mello, para quem a confessionalidade do ensino religioso fere diretamente a laicidade do Estado.

O ministro Gilmar Mendes, ao votar a favor do ensino confessional, ironizou o Estado laico.

”Será que precisaremos em algum momento chegar ao ponto de discutir a retirada da estátua do Cristo Redentor do Morro do Corcovado, por simbolizar a influência cristã em nosso país? Ou a extinção do feriado nacional da padroeira Nossa Senhora Aparecida?”, disse.

Laicidade e liberdade religiosa

A laicidade de um Estado, porém, não tem a ver com a aniquilação de religiões e suas manifestações. Ao contrário, o texto da Constituição de 1988 afirma no artigo 5º, inciso VI, que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

“A laicidade é a maior garantia da liberdade religiosa. Um Estado laico diz que a religião é da esfera privada e que não tem lugar para ela na esfera pública. Isso permite que todas as fés sejam exercidas, porque o Estado não opta por uma delas”, explica o professor Yves de La Taille, especialista em psicologia moral da Universidade de São Paulo.

Religião na escola

E nas escolas não deveria ser diferente. A proposta da PGR não era suprimir toda e qualquer assunto religioso da escola, privando os alunos de um desenvolvimento integral e da possibilidade de debater livremente o que quiserem.

Em entrevista ao Jornal da CBN, a socióloga Maria Alice Setubal explica esta questão: “do ponto de vista histórico, a religião é muito importante porque perpassa toda a história dos povos e é fundamental abordar isso nas aulas”.

Para La Taille, a decisão de autorizar o ensino religioso confessional decorre de um entendimento errôneo do que seja um Estado laico, além da crença de que religião e moral são a mesma coisa.

Um dos argumentos utilizados, vindo sobretudo de associações religiosas, é o de que a religião transmite valores morais às crianças, ensinando o que é “certo” e “errado”, o que em tese contribuiria para a construção de uma sociedade “melhor”. Com dois exemplos atuais, o professor da USP desconstrói essa teoria.

“A laicidade é a maior garantia da liberdade religiosa. Um Estado laico diz que a religião é da esfera privada e que não tem lugar na esfera pública. Isso permite que todas as fés sejam exercidas”, diz Yves de La Taille

“A interpretação religiosa que o Estado Islâmico dá ao Alcorão resulta no terrorismo. Na Birmânia, budistas massacram muçulmanos. Bastam estes dois exemplos para aniquilar a tese de que a religião está sempre alinhada com os direitos humanos”.

No Brasil, embora o alcance da violência não se compare aos exemplos citados, também ocorrem casos de intolerância e perseguição a homossexuais, transexuais e seguidores de outras religiões minoritárias, especialmente as de matriz africana, em nome de uma fé.

“A religião é um campo de conflitos no mundo inteiro. Sempre foi e continua a ser”, explica Luiz Antônio Cunha, coordenador do Observatório da Laicidade na Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“Nas escolas particulares que seguem uma religião, não há discriminação, porque matricular-se nessa instituição pressupõe a adesão, algo que não ocorre nas públicas. Lá, alguém sempre será discriminado”, diz.

Para Juvenal Savian Filho, professor de Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), há, no entanto, iniciativas interessantes de ensino religioso nas escolas. “Elas têm caráter ecumênico e visam iniciar os estudantes na vida espiritual marcada pela busca do Transcendente”.

Savian Filho explica que o ideal seria que os professores, partindo de sua experiência de fé, refletissem com os estudantes sobre o que significa encontrar um sentido transcendente para a vida, a natureza do fenômeno religioso e as diferentes tradições religiosas que mais influenciam a região em que fica a escola.

Não é isso, contudo, que se observa na prática. “Grande parte das escolas que conheço tem aulas muito problemáticas, com docentes que se sentem mais missionários do que professores, que anunciam mais do que refletem, não têm cultura geral, conhecem Ciência menos do que os estudantes e, portanto, não conseguem dialogar com os outros professores, são péssimos em História e outras coisas mais”, diz.

Implicações do ensino religioso confessional e facultativo

Superficialmente pode-se dizer que ter a escolha de participar ou não das aulas é algo positivo e que resolveria a polêmica. Um olhar mais atento, contudo, revela alguns pontos sensíveis.

Juvenal Savian Filho: “Grande parte das escolas que conheço tem aulas muito problemáticas, com docentes que se sentem mais missionários do que professores”

Na primeira sessão do julgamento, os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber concordaram com um argumento da PGR de que o ensino religioso facultativo pode expor crianças a constrangimentos, caso elas escolham não frequentar as aulas, por exemplo.

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Maria Alice Setubal também demonstra preocupação: “um aluno pode não querer declarar publicamente sua fé, ou pode não ter uma fé. Fico imaginando essa criança diante de um professor católico, evangélico. Como ele vai se sentir perante o grupo? Como vai se sentir protegido para não participar? Acho difícil isso ficar na mão do aluno”.

“Pode também fazer com que alunos se matriculem no curso contra vontade, só para não chamar atenção como alguém diferente”, complementa o professor La Taille, da USP.

Outro ponto da PGR dizia respeito a tendência por privilegiar uma religião em detrimento de outras. Em um País majoritariamente cristão e que firmou um acordo com o Vaticano em 2010 sobre ensino religioso nas escolas, dar atenção à diversidade religiosa pode ser uma dificuldade, inclusive no momento de contratar professores ou representantes de outras religiões para ministrar as aulas.

“Autorizar a natureza confessional, em uma sociedade essencialmente cristã, pode marginalizar a parcela dos que têm outras religiões ou sequer têm uma crença. E a maneira como a matéria foi votada no STF favorece as religiões cristãs. Aliás, não vamos esquecer que neste Tribunal existe um crucifixo na parede  e isso não é nada laico”, observa Yves de La Taille.

“Não vamos esquecer que neste Tribunal existe um crucifixo”

“A minha pergunta é: por que nas escolas públicas?”, questiona Carlos Roberto Jamil Cury, professor da pós-graduação em Educação da PUC. “As igrejas possuem rede radiofônica, cadeia de TV, afora os templos. Esses, junto com as famílias, são os locais ideais para a transmissão da religiosidade e do religioso”, avalia.

Finalizando sua entrevista à CBN, Setubal ressaltou a importância da diversidade. “Preocupa em um mundo de tantas intolerâncias a escola optar por uma religião única. Trabalhar todas as crenças, a história das civilizações e a diversidade, mostrando que não há só um caminho certo, é o que está faltando hoje. Resta à sociedade se mobilizar e acompanhar como isso será implementado nas escolas”.

Pontos abertos

A partir da decisão do STF, algumas questões ficaram indefinidas sobre como o ensino religioso nas escolas vai acontecer na prática. Não se sabe, por exemplo, se o financiamento destas aulas será custeado pelo Estado ou se devem ser feitas parcerias gratuitas com as instituições religiosas. Isso abre outra questão.

“Isso é dinheiro público. Tudo o que a escola faz é feito com dinheiro dos impostos, então não vejo por que deva ser usados para ensinar uma determinada corrente religiosa”, diz Yves de La Taille.

O professor Cury também levanta algumas questões: “suponhamos que em uma escola haja pelo menos sete orientações: católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, cultos afro, agnósticos e ateus. Como conciliar tempo e espaço nas escolas?”.

O que a criança que optar por não assistir às aulas de religião vai fazer durante este período? Se derem a ela outra atividade, então as crianças que estão assistindo à aula de religião vão perder esta oportunidade?

Restam ainda várias outras dúvidas sobre como esta decisão do STF pode repercutir no cotidiano das escolas.

O que a criança que optar por não assistir às aulas de religião vai fazer durante este período? Se derem a ela outra atividade, então as crianças que estão assistindo à aula de religião vão perder esta oportunidade de aprendizagem? Quem vai ministrar as aulas?

Um padre, por exemplo, teria condições de ensinar uma filosofia espírita ou do candomblé? E os ateus e agnósticos?

E as crianças que ainda não decidiram no que acreditam ou não acreditam? Onde se encaixam? Dúvidas como estas mostram que a decisão pode trazer mais tensões do que soluções para a escola.

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