publicado dia 29/08/2023

“Emilia Ferreiro tinha um profundo respeito pela infância e suas culturas”, diz Giovana Zen

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🗒️ Resumo: Neste sábado (25/08), faleceu Emilia Ferreiro (1937-2023), educadora argentina que transformou o processo de alfabetização. Junto a Ana Teberosky, criou a teoria da psicogênese da língua escrita. Seu legado será mantido vivo pela Rede Latino-Americana de Alfabetização, presidida por Giovana Zen, a entrevistada desta reportagem. 

Foi Emilia Ferreiro quem, pela primeira vez, percebeu que as crianças eram melhor alfabetizadas e com mais sentido quando participavam de práticas sociais reais de leitura e escrita de forma ativa, ao contrário das tradicionais atividades mecânicas e repetitivas.

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A revolução que a pedagoga e psicóloga argentina promoveu a partir disso vai desde a transformação no olhar para as infâncias que atravessam a alfabetização até conceber esse processo enquanto elemento central para a democracia.

“Emilia lutava por uma América Latina mais justa e democrática e sempre esteve convicta que a alfabetização era um aspecto fundamental nessa luta”, diz Giovana Zen, professora da Universidade Federal da Bahia, com pós-doutorado em Alfabetização, orientado por Emilia Ferreiro, em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral.

emilia ferreiro

Para Emilia Ferreiro, o direito à plena participação na sociedade depende da alfabetização

Aos 86 anos, Emilia faleceu, não sem antes ver renascer a Rede Latino-Americana de Alfabetização. Originalmente fundada pela educadora em 1987, a Rede tinha o propósito de reunir educadores latino americanos que acreditavam no direito dos estudantes de serem ouvidos e respeitados como sujeitos capazes de aprender.

Este ano, na data de aniversário da pesquisadora argentina, a Rede foi relançada para ampliar e atualizar o debate sobre os desafios da alfabetização na América Latina.

“Nossa responsabilidade que já era grande, com a partida da Emilia se tornou imensa: honrar o pensamento e os princípios da pessoa que mudou a nossa forma de olhar as crianças e de ver o mundo”, diz Giovana, que é presidente da Rede. Confira a entrevista completa a seguir: 

Centro de Referências em Educação Integral: Em que posição Emilia Ferreiro coloca as crianças no processo de alfabetização e que concepção de infância ela revela ao fazer isso?

Giovana Zen: Emilia Ferreiro tinha um profundo respeito pela infância e suas culturas. Através das suas pesquisas foi possível aprender a olhar as crianças e reconhecer que elas são sujeitos intelectualmente ativos, que inseridos no seu contexto cultural, elaboram conceitualizações sobre um de seus mais valiosos instrumentos que é a escrita. 

Emilia também defendia que as crianças não deveriam ser abandonadas à própria sorte em seu processo de construção da escrita e que os professores tinham um papel fundamental na proposição de situações didáticas que tivessem sentido e significado.

CR: E o próprio ato de ler e escrever, para quais propósitos eles servem na proposta da educadora? 

GZ: Em um livro chamado Com todas as letras (Cortez, 2004), Emilia afirma que “há que se alfabetizar para ler o que os outros produzem ou produziram, mas também para que a capacidade “dizer por escrito” esteja mais democraticamente distribuída. Alguém que pode colocar no papel suas próprias palavras é alguém que não tem medo de falar em voz alta”.  

Emilia lutava por uma América Latina mais justa e democrática e sempre esteve convicta que a alfabetização era um aspecto fundamental nessa luta. 

CR: De quais maneiras essa forma de alfabetizar se mostra necessária e atual para os desafios contemporâneos do contexto latino americano?

GZ: Emilia propõe uma forma de compreender a escrita como um objeto cultural complexo e valioso. Essa ideia impacta diretamente a forma de alfabetizar porque defendemos que o ensino da linguagem escrita não pode ser fragmentado em sons, letras, sílabas e palavras. 

“O direito à plena participação na sociedade pressupõe apropriar-se das diferentes formas de relação social que se realizam através da linguagem escrita”

Alfabetizar-se significa aprender a ler e a escrever participando de práticas sociais reais de leitura e escrita e não de atividades mecânicas e repetitivas, comprometidas apenas com os aspectos fonológicos da língua. 

O direito à plena participação na sociedade pressupõe apropriar-se das diferentes formas de relação social que se realizam através da linguagem escrita. 

CR: O relançamento da Rede Latino-americana de Alfabetização é uma forma de manter vivo o legado de Emilia. Pode contar um pouco desse trabalho e como ele pode contribuir para fazer o pensamento de Emilia chegar a mais pessoas e continuar se desenvolvendo?

GZ: Em outubro de 1987, Emilia Ferreiro reuniu no México educadores da Argentina, Brasil, México e Venezuela comprometidos com o direito das crianças, jovens e adultos de serem escutados e respeitados enquanto sujeitos capazes de aprender. 

Esse foi o embrião de um movimento que congregou profissionais de toda a América Latina ao longo dos anos de 1990, em prol do objetivo de difundir as contribuições da abordagem construtivista psicogenética, revolucionando as discussões sobre a alfabetização.

Em 5 de maio do ano em curso, a Rede Latino-Americana de Alfabetização foi relançada e com isto retoma o propósito de reunir pesquisadores e professores latino-americanos que seguem acreditando que por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa. 

Assista ao evento de relançamento da Rede, com participação de Emilia Ferreiro:

A Rede se compromete a difundir amplamente o conhecimento psicolinguístico e didático produzido por diversos pesquisadores latino-americanos, a partir do marco construtivista psicogenético, nos últimos 30 anos. 

Para empreender as ações planejadas, contamos com um Conselho Consultivo formado por 14 educadoras de sete países da América Latina. Todas possuem uma trajetória expressiva no campo da alfabetização a partir do marco epistêmico inaugurado pela Emilia Ferreiro. Além disso, já está em formação os Núcleos Nacionais no Brasil, na Argentina, no México e no Uruguai. 

Nossa responsabilidade que já era grande, com a partida da Emilia se tornou imensa: honrar o pensamento e os princípios da pessoa que mudou a nossa forma de olhar as crianças e de ver o mundo.

CR: Como educadora, quando você entrou em contato pela primeira vez com o trabalho da Emilia Ferreiro? Na sua opinião, qual é o principal legado dela para a discussão sobre alfabetização hoje?

GZ: Eu tinha 17 anos e já era uma professora alfabetizadora quando fui apresentada às ideias da Emilia Ferreiro, no final da década de 1980, em uma jornada pedagógica realizada no início do ano letivo. 

No primeiro dia de aula constatei que meus alunos também escreviam daquele jeito e fiquei fascinada. Muitos anos depois, já como pesquisadora, tive o privilégio de ser orientada pela Emilia Ferreiro em uma investigação sobre as particularidades do processo de aquisição da escrita no português brasileiro.

“Ainda há muito a ser compreendido do que ela produziu como pesquisadora psicolinguística”

As investigações psicolinguísticas realizadas por Emilia Ferreiro provocaram rupturas epistemológicas profundas no modo de compreender a criança, a escrita e o processo de alfabetização. 

A ampla produção científica relacionada ao construtivismo psicogenético deixada pela Emilia Ferreiro se constitui em um importante legado para educadoras e educadores comprometidos com o direito à alfabetização plena de crianças, jovens e adultos. Ainda há muito a ser compreendido do que ela produziu como pesquisadora psicolinguística.

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