publicado dia 22/08/2018
A educação quilombola como resistência de suas comunidades e culturas
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 22/08/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
Djey Dornelles Teixeira é uma adolescente de 17 anos que sonha cursar Psicologia. É também parte da primeira geração da Comunidade Quilombola Morada da Paz, localizada no interior do Rio Grande do Sul, a frequentar uma escola. Um direito que permanece envolto em obstáculos.
“Sou menina, negra, quilombola, moro na zona rural, muito longe de onde estudo. Ir à escola é sempre um desafio”, diz Djey, que é aluna do 2º ano do Ensino Médio de uma escola pública regular da cidade de Porto Alegre.
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Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias irá abordar como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.
Para além das dificuldades de acesso, a jovem se queixa de aulas que não conversam com sua identidade e cultura. “Só lembram da história e da cultura dos quilombolas em novembro, e só na matéria de História”, conta.
Por estes motivos, diz que persiste nos estudos porque “é preciso”. Do contrário, não estudaria. “Posso aprender muito mais com a minha comunidade, viajando e conhecendo outros quilombos, mas eu sei que ter um diploma é muito importante na nossa sociedade, ainda mais sendo negra e quilombola”, diz.
A experiência da jovem dialoga com a de várias outras crianças e adolescentes de comunidades tradicionais matriculados nas redes de ensino do País. Se em suas comunidades a educação acontece de maneira integral, por meio da experiência e articulada ao território e à cultura, nas escolas o que encontram são aulas que pouco ou nada conversam com suas realidades.
“Temos uma escola pautada em referenciais curriculares muito padronizados, que não olha para o territórios e outros saberes. E agora, com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), há uma tendência a homogeneizar ainda mais”, observa Lourdes de Fátima Bezerra Carril, professora na Universidade Federal de São Carlos que desenvolve pesquisas sobre educação quilombola por meio do Observatório Quilombola.
Permeado por barreiras físicas, culturais, políticas e étnico-raciais, o acesso à educação formal por estes povos se traduz, muitas vezes, em precariedade, preconceito e discriminação.
Se em suas comunidades a educação acontece de maneira integral, por meio da experiência, nas escolas o que encontram são aulas que pouco conversam com suas realidades
“Se na escola se desconsidera, por exemplo, o racismo, cria-se um processo que leva as crianças negras a pensarem que têm que adquirir outras formas de comportamento, outro símbolo social”, diz Lourdes.
Em Rio de Contas, interior da Bahia, a pesquisadora Claudia Rocha da Silva, professora na Faculdade de Letras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), observou estes efeitos de perto.
Estudando o tratamento dado por uma escola à linguagem dos estudantes quilombolas que frequentavam o Fundamental I, percebeu um forte preconceito linguístico. Os alunos eram estigmatizados como “menos inteligentes” pelos professores porque “falavam errado”.
“Esses estudantes eram discriminados por serem falantes de uma variante linguística estigmatizada, o que a antropóloga Lélia Gonzalez nomeava de português afro-brasileiro, ou pretoguês”, diz Claudia. O resultado foi a rejeição dos alunos à própria língua e, consequentemente, à sua cultura.
Os quilombos foram formados na era colonial, principalmente, a partir da resistência de negros escravizados e libertos. Muitos deles se associaram a povos do campo e indígenas. A educação das crianças sempre ocorreu nos quilombos, liderada pelos mais velhos, e articulada à prática e à tradição oral.
“Encontramos estudantes com uma acentuada baixa autoestima, silenciados no espaço escolar por não se sentirem capazes de dizer a língua e, por conta disso, demonstrando desempenho insatisfatório”, conta a pesquisadora.
Apesar da necessidade de aprender a norma culta da língua, Claudia alerta que isso não pode significar um processo de aculturação linguística. “A escola deve estar aberta e preparada para lidar com as diferenças, sejam as raciais, as linguísticas ou quaisquer outras. Senão corre o risco de excluir os que não se enquadram nos modelos pré-estabelecidos tradicionalmente”, diz.
Em outras palavras, apenas uma educação que se proponha a olhar para a diversidade pode ser capaz de transformar desigualdades em potencialidades e construir uma escola verdadeiramente brasileira.
A fim de recuperar a ancestralidade que, por vezes, a escola distorce e resume à escravidão, as comunidades quilombolas começaram, por volta de 1980, a se organizar em prol de uma educação quilombola.
Desde então, foram instituídas legislações para respaldar a garantia da educação dos quilombolas, como a Lei Nº. 10639 (2003), que tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico‐raciais (2007) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (2012).
Hoje, existem pouco mais de 2300 escolas localizadas em áreas remanescentes de quilombos no País para cerca de 5 mil comunidades quilombolas, segundo dados de 2017 do Governo Federal. Destas, somente 34% utilizam materiais didáticos específicos para atendimento à diversidade sociocultural quilombola.
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, de 2012, estas escolas devem estar inscritas em suas terras, e ter uma pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade, bem como reconhecer e valorizar sua diversidade cultural.
“Não há um modelo único de comunidade quilombola e, portanto, não há um formato específico para pensar uma educação quilombola”, diz Kalyla Maroun, professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Cada comunidade tem um processo singular de constituição de identidade, de formação e autoatribuição enquanto quilombo e assim devem ser pensadas cada uma das escolas destes territórios”, explica.
Em comum, estão desafios como garantir saneamento básico, transporte, energia elétrica e alimentação. A maioria das escolas localizadas nas áreas rurais funciona em espaços improvisados, cedidos ou alugados de instituições religiosas ou privadas, em barracões ou salões comunitários, em condições muito precárias.
Apesar das dificuldades, algumas escolas quilombolas resistem. É o caso da primeira escola quilombola do estado do Rio de Janeiro, inaugurada em 2013. Nomeada em homenagem à mulher que lutou até o fim pela garantia dos direitos da comunidade quilombola de São Pedro da Aldeia (RJ), a escola municipal Dona Rosa Geralda da Silveira atende quase 300 crianças, da pré-escola ao 3º ano do Ensino Fundamental.
Mais do que o ensino curricular, a escola preza pela valorização e preservação da cultura e identidade quilombola. “Nosso projeto é voltado para deixar os nossos alunos por dentro da história que veio a originar a escola e para que eles tenham uma educação de qualidade”, conta a diretora Ana Rogéria Arruda Moraes.
Ela conta que com os alunos mais velhos trabalha, por exemplo, o vocabulário próprio da comunidade. Com os mais novos, utiliza-se da literatura infantil para contar histórias sobre a África. Ano passado, inclusive, uma mulher quilombola foi pessoalmente contar para as crianças sobre a origem do quilombo.
Além disso, pretendem desenvolver o projeto Sabores da Terra para abordarem as origens da alimentação quilombola e seu cultivo. Na merenda da escola, inclusive, já incorporaram abóbora, aipim, carne-seca, e muitas frutas.
Para as apresentações dos alunos em festas da escola, os pequenos aprendem um pouco mais sobre músicas e danças africanas. Na última, convidaram um grupo africano para fazer uma apresentação.
“Trabalhamos com esses elementos para reforçar a identidade negra É comum eu receber pais que dizem que o filho é pardo, que é moreno, ao invés de dizer negro. Queremos valorizar a identidade dessas crianças para elas saberem que são importantes”, diz a diretora.
“Queremos valorizar a identidade dessas crianças para elas saberem que são importantes”, diz a diretora Ana Rogéria
Ela ressalta que nada disso seria possível sem o comprometimento das dezenas de professores que lá trabalham. Ao chegarem, os docentes passam por uma sensibilização ao tema, estudam o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola e as Diretrizes da Educação Quilombola, além de receberem cursos de formação continuada.
“De nada adiantaria criar um PPP se os professores não levassem a sério. Mas eles querem fazer mais pela cultura, querem estudar, conhecer, e levar isso para as crianças”, comemora Ana Rogéria.
Mas todo esse empenho em valorizar a cultura afro-brasileira não vem sem alguma resistência. A escola, aberta à comunidade, recebe muitos alunos de fora do quilombo, e algumas famílias não entendem o projeto de educação em vigor, e “acham que só ensinam macumba”, como conta a diretora, e acabam tirando os filhos da escola.
“Eu sou negra, e sei a importância de valorizar nossa história. Por meio do estudo, porque a nossa cultura ficou adormecida por muito tempo no ambiente escolar, as crianças pequenas vão poder conhecer a nossa bonita história, que nós não vamos deixar morrer”, diz Ana Rogéria.
A escola quilombola de São Pedro da Aldeia, no entanto, enfrenta um problema comum a muitas outras: a falta de continuidade para as demais etapas de ensino. São raras as unidades que ofertam Ensino Fundamental II e Médio. Uma delas fica em Palmas, no interior do Paraná.
Inaugurado em 2009, o Colégio Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira recebe 460 estudantes, e também trabalha os conteúdos regulares do currículo junto aos saberes e culturas africanas e do quilombo.
Em relação às matrículas em escolas quilombolas, o Ensino Médio concentra apenas 5,9% enquanto o Fundamental corresponde a 68,5%, segundo o estudo Educação Escolar Quilombola no Censo da Educação Básica, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2015.
“Nós, negros, já passamos tempo demais sem vez, sem voz. Agora vamos mostrar que somos capazes, sujeitos de nossa própria história”, diz Rosemary Ferreira da Silva Câmara, diretora do colégio. “E ter escolas quilombolas é fundamental para isso, e não significa que estamos nos excluindo, como dizem, até porque o quilombo hoje é composto por várias etnias, acolhemos a todos”, afirma.
A diretora também conta que promover intercâmbios culturais é um dos principais objetivos da escola, e que costumam visitar outros espaços e cidades vizinhas. Em breve, por exemplo, os estudantes irão conhecer uma comunidade indígena para ensinar a mankala, um jogo africano para aprender matemática.
Dentro da escola, procuram trabalhar o racismo e outras questões por meio do resgate da autoestima e da ancestralidade, mostrando sua riqueza cultural. Sobre a importância destas ações, Rosemary sintetiza: “Queremos nossos direitos, ter visibilidade na sociedade e diante do poder público, porque ainda temos muito preconceito e racismo no Brasil.”