publicado dia 03/01/2019
Educação quilombola: como as escolas incorporam os saberes do território?
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 03/01/2019
Reportagem: Ingrid Matuoka
Griot significa “biblioteca viva” para muitas comunidade quilombolas. É assim que eles designam os mais velhos, guardiões dos saberes culturais, responsáveis por ensinar aos mais novos a viver segundo suas tradições, a cultivar plantas, a ler a natureza, a entender os sinais da terra, e a manter vivos os antepassados que fundaram a comunidade e os seres folclóricos que habitam o imaginário de cada um.
Leia + A educação quilombola como resistência de suas comunidades e culturas
A comunidade quilombola trata-se de um fértil território educativo, onde crianças recebem uma educação integral, brincando, experimentando, conversando e observando as demais crianças e adultos.
A educação quilombola tem respaldo em documentos como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e a Lei n. 10.639/03, pela educação para as relações étnico-raciais nas escolas.
Neste contexto, a escola quilombola serve para sistematizar esses saberes e garantir o direito de todos à educação. Contudo, se essa escola não tiver um quadro docente e de gestão composto primordialmente por educadores oriundos da comunidade e atentos a uma educação quilombola, o resultado pode ser a imposição dos saberes curriculares sobre os locais.
Conheça algumas escolas que promovem uma educação quilombola que parte dos saberes locais e do território para ensinar os conteúdos curriculares.
A comunidade quilombola Jamari dos Pretos, em Turiaçu (MA), tem enfrentado a desvalorização da própria cultura. Apesar da forte tradição no uso medicinal das plantas para casos que não requerem um hospital ou tratamentos mais específicos, muitos moradores têm preferido enfrentar a dor do que aceitar um analgésico feito a partir de cascas de árvores.
“Levar esse saber para dentro da escola fortalece essa cultura dentro da comunidade, e as pessoas veem sua importância por outro viés”, conta Antonio Maria Ribeiro Pinheiro, professor de Ciências Agrárias na escola, que oferta Ensino Médio Profissionalizante em Agropecuária.
A escola surgiu da vontade que muitos tinham de permanecer na própria comunidade, sem ter que sair para concluir os estudos ou conseguir um emprego. Antonio Maria ressalta que esta, por si só, já é uma conquista, mas que ainda seria importante trazer mais da cultura quilombola para as salas de aula. ”Esses saberes estão se perdendo com os mais velhos. Parte da comunidade resiste nessa questão de valorizar a própria cultura”, conta.
Dentre outros saberes da comunidade que poderiam fazer parte da educação escolar quilombola, o professor destaca os ritmos e batuques, como o tambor criolo e o artesanato, que vão desde utensílios para uso na lavoura, como peneira e balaio, até adornos, como o anel de semente de tucumã, uma palmeira da região.
Também conta sobre as lendas da região, como o Curupira e os bichos do mato ou da água, espíritos da floresta que zelam pela natureza e evitam que animais sejam caçados em demasia ou que se derrubem muitas árvores.
Mas há avanços. A escola se dedica a contar a história da formação da comunidade e sobre a escravidão no Brasil promovendo visitas a fazendas que usavam mão de obra escrava, e recolhem e expõem utensílios e artesanatos encontrados nos locais. “Nós fazemos isso para explicar para os jovens que, às vezes, não tem muito conhecimento dessa situação, para que isso nunca mais se repita”, afirma o professor.
A princípio, esta escola quilombola de Palmas (PR) só ofertava os anos iniciais do Ensino Fundamental. Depois desta etapa, os alunos eram obrigados a mudar para escolas regulares para continuar os estudos e a experiência raramente era positiva — a escola era distante, os alunos sofriam preconceito e discriminação, e tinham seus saberes menosprezados. O resultado é que, muitas vezes, abandonavam os estudos.
A líder da comunidade Maria Arlete, atenta a essa situação, pediu a expansão da escola. Agora, a unidade oferta até o Ensino Médio, com gestores e educadores quilombolas, e uma matriz curricular inteiramente dedicada à valorização dos saberes quilombolas, afro-brasileiros e africanos.
“Em matemática, a gente trabalha jogos e geometria africana. Em português, foram trabalhados os hinos das nações africanas. Em um projeto interdisciplinar, também estudamos 6 países africanos e suas relações com a cultura quilombola e afro-brasileira”, explica Mara Lúcia da Rosa, coordenadora pedagógica.
Como a escola fica em um quilombo urbano, os adultos e crianças têm pouco costume de plantar o próprio alimento. Por isso, a merenda da escola é pensada com foco nisso. Por meio de doações de alimentos naturais, preparam abóbora, mandioca, chuchu, canjica, quirera com carne de porco, e conversam com os alunos sobre alimentação e produção de alimentos.
Agora, a escola está diante de um novo desafio, pois receberam alunos indígenas da etnia Kaingang. “Estamos tentando trazer professores indígenas para a escola, mas por enquanto o que fazemos é promover trocas de vivências nas comunidades. E o mais legal é que agora alunos quilombolas estão aprendendo a língua Kaingang”, conta a pedagoga.
Outra ação da escola é trazer anciãs quilombolas para conversar com os alunos, com o objetivo de resgatar o entendimento de que suas histórias são construídas pela oralidade e conversas em roda, e não pela escrita.
“A nossa comunidade tem regime matriarcal. Elas vêm então contar sobre a nossa formação e lendas, e isso faz com que os alunos vejam esse lugar da mulher como positivo, que nunca fomos silenciadas, como na sociedade patriarcal. A nossa escola é resistência, é trazer o negro como uma figura positiva, e não negativa como sempre esteve nos livros didáticos”.