publicado dia 11/11/2025
Como a violência armada afeta a vida de crianças e adolescentes
Reportagem: Ingrid Matuoka | Edição: Tory Helena
publicado dia 11/11/2025
Reportagem: Ingrid Matuoka | Edição: Tory Helena
🗒️ Resumo: A Operação Contenção, realizada pelas polícias civil e militar do Rio de Janeiro (RJ) nos complexos da Penha e do Alemão em 28 de outubro, reacendeu o debate sobre os impactos da violência para as populações que vivem em locais conflagrados. Entenda como a situação afeta o cotidiano e fragiliza os direitos de crianças e adolescentes nesses territórios.
Ocorrida em 28 de outubro de 2025, a Operação Contenção entrou para a História como a mais letal já realizada por forças policiais no Brasil. Ao menos 121 pessoas foram mortas durante a ação nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ), de acordo com estatísticas oficiais divulgadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. A maioria eram homem negros e ao menos 6 tinham menos de 20 anos, segundo lista com a identificação dos mortos.
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“A infância não é igual para todos no Brasil”, diz Eliana Sousa Silva
Para especialistas ouvidos pelo Centro de Referências em Educação Integral, a Operação Contenção reforça uma situação de fragilidade para os direitos de crianças e adolescentes que vivem nesses territórios. Os educadores que trabalham ou moram nas regiões afetadas também são diretamente impactados pela situação, que é complexa e envolve confrontos e violência armada.
Os mortos na operação eram pais, tios, primos e irmãos de crianças e adolescentes que agora vivem múltiplos lutos. Eles vão da perda de pessoas próximas à conscientização de que, não somente o Estado viola seus direitos, como o faz de maneira arbitrária, já que não veem crianças e adolescentes brancos e ricos na mesma situação.
“A infância não é igual para todos no Brasil. Na favela, ela é atravessada por questões que não deveriam fazer parte dessa fase da vida. Elas precisam lidar muito cedo com o medo do que pode acontecer quando tem confrontos armados no território. Elas têm que amadurecer mais rápido do que as outras crianças e não podem viver essa fase de forma segura”, diz Eliana Sousa Silva, diretora fundadora da Redes da Maré, organização que realizou a escuta das infâncias periféricas por meio do projeto Cartas da Maré.
A forma como as crianças e adolescentes percebem o lugar que moram também é prejudicado, explica Eliana, já que fere diretamente o significado simbólico e afetivo da relação com o lugar onde moram.
“A favela é o lugar onde o Estado chega sem cumprir com preceitos legais, algo impensável em outras partes da cidade, onde a polícia pede licença e tem uma abordagem bem menos violenta”, diz Eliana.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) determinou que o Estado do Rio apresente informações ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a megaoperação, com detalhamentos sobre o grau de força empregado, medidas adotadas para evitar abusos, como o uso de câmeras corporais, ações de assistência às vítimas e suas famílias, e se as 51 pessoas com mandados de prisão realmente estavam no local quando a operação policial ocorreu.

Movimentos sociais e comunidades realizaram protestos em diferentes cidades após a Operação.
Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil
Na esteira do episódio, movimentos sociais como a Coalizão Negra por Direitos, Unegro, Movimento Negro Unificado (MNU), Uneafro e Marcha das Mulheres Negras convocaram protestos em diferentes cidades, entre elas, São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Brasília (DF), Fortaleza (CE) e Salvador (BA).
Três dias após a operação, a AtlasIntel divulgou uma pesquisa que mostra que 8 em cada 10 moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro apoiam a megaoperação. Para Eliana, que cresceu na favela onde fundou sua organização da sociedade civil, a percepção resulta da ausência do Estado na periferia para garantir direitos, qualidade de vida e soberania.
“Com o controle territorial por redes ilícitas, o morador se sente acuado e, por isso, quer respostas que sejam rápidas. E como a Segurança Pública é um Direito Humano que não se estabeleceu para quem é morador de favela, que não tem a experiência de viver esse direito, essa é forma de ação a que têm acesso, como uma questão militar e bélica”, explica Eliana.
Para além do impacto direto de mortes e de viver sob esse risco, são as crianças negras e periféricas que não podem brincar livremente nas ruas ou acessar espaços de lazer, esporte e cultura.
“É uma situação fragilizada em relação a Direitos Humanos básicos, como Segurança, Educação, Saúde, porque esses serviços fecham de forma intermitente e não há segurança no ir e vir”, aponta Pilar Lacerda, Secretária Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e Presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).

48 escolas foram fechadas no Complexo do Alemão e na Penha por três dias
Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Também são essas crianças e adolescentes que perdem boa parte de seus dias letivos por causa de operações policiais. Nessa última, 48 escolas foram fechadas no Complexo do Alemão e na Penha por três dias, de acordo com a Prefeitura do Rio de Janeiro (RJ).
Entre os anos 2016 e 2025, cerca de 20 mil estudantes da Maré perderam quase um ano letivo entre 2016 e 2025 em decorrência da violência armada no território. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, cerca de metade dos estudantes do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas sofrem impactos da violência armada.
São mais de 800 mil crianças e adolescentes, de 1,8 mil escolas públicas da capital e de mais 19 municípios da região, de acordo com o relatório Educação Sob Cerco: As escolas do Grande Rio impactadas pela violência armada, divulgado em maio deste ano pelo Unicef e Instituto Fogo Cruzado.
Escolas fechadas e dias letivos perdidos impactam a aprendizagem dos estudantes, mas também causam traumas e prejudicam inclusive a garantia de outros direitos, como o acesso à alimentação e o uso do espaço público para brincar, aprender, socializar e se desenvolver. “Nossas crianças periféricas crescem sem uma boa escolarização e acesso a oportunidades que poderiam mudar suas vidas”, diz Pilar.
“Quando se programa uma operação dessas, não se leva em conta as milhares de crianças que estão nesse espaço, o que é um desrespeito ao Artigo 227 da Constituição Federal, que determina que as crianças e adolescentes são prioridade absoluta”, complementa.
Em meio a esse contexto, os professores também precisam de atenção e cuidado, inclusive para terem condições de apoiar os estudantes. “Eles são muito afetados, não somente por trabalho interrompido e ameaçado, mas também na saúde mental, pelo estresse a que estão constantemente submetidos. O adoecimento dos profissionais da Educação nessas regiões é muito alto”, alerta Pilar.
Em curso desde 2019, a ADPF das Favelas é uma ação que discute meios para reduzir a letalidade policial e proteger moradores das comunidades e seus direitos humanos. Em abril deste ano, o STF determinou alguns critérios para tanto, como planejamento prévio das ações, uso obrigatório de câmeras corporais, comunicação imediata ao Ministério Público sobre as operações e monitoramento contínuo das ações e seus resultados.
“Precisamos diminuir a desigualdade econômica a partir da cobrança de impostos de bilionários, garantir políticas públicas, como transporte público e saneamento, e refletir como sociedade a seguinte questão: Que país nós estamos construindo ao tratar nossas crianças e adolescentes dessa maneira?”, diz Pilar Lacerda.
A Redes da Maré propôs à ADPF das Favelas a inclusão de mecanismos de escuta coletiva para a garantia dos 200 dias letivos, divulgação clara das ações de recomposição de aprendizagem implementadas pelas redes de ensino, proteção aos profissionais de Educação, também afetados pela violência e políticas de apoio à saúde mental da comunidade escolar.
“Essa operação não respeitou muito do que foi prescrito pela ADPF das Favelas. É preciso apoio da sociedade para que compreendam seu sentido. Não é uma ação judicial para que a polícia não trabalhe, mas pela garantia do direito à vida”, explica Eliana.
Pilar destaca a importância de pensar nas crianças antes de organizar operações policiais, a proteção às famílias expostas às facções criminosas, e uma revisão da guerra ao tráfico empregada pelo Brasil.
“Essa guerra tem mais de 40 anos, o que mostra que se esse fosse o caminho certo, ela já teria acabado. Precisamos diminuir a desigualdade econômica a partir da cobrança de impostos de bilionários, garantir políticas públicas, como transporte público e saneamento, e refletir como sociedade a seguinte questão: Que país nós estamos construindo ao tratar nossas crianças e adolescentes dessa maneira?”, diz Pilar.
*Foto: Tânia Rego/Agência Brasil