publicado dia 23/07/2018
Como a diversidade se traduz em desigualdade na escola brasileira
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 23/07/2018
Reportagem: Ingrid Matuoka
Ainda recentemente, antes do ano 2000, as crianças das comunidades indígenas dos Baniwa e Coripaco, no Alto do Rio Negro (AM), frequentavam escolas de missionários evangélicos e católicos, onde aprendiam, entre lições de Língua Portuguesa e Matemática, sobre como o seu modo de viver era “errado”.
“Eles diziam que não podíamos mais falar a nossa língua porque não éramos mais índios. Falavam que tínhamos que estudar para não pegar sol e chuva como nossos pais, para nunca mais pegar em machado, mesmo que o desejo da comunidade fosse o de continuar em suas terras, com sua cultura”, conta André Baniwa, liderança indígena.
Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias irá abordar como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.
Para fazer frente ao silenciamento, no início dos anos 90, lideranças Baniwa e Coripaco se reuniram para planejar uma escola indígena na região. Em 2000, foi então inaugurada a Escola Pamáali, da qual André é um dos fundadores e que foge dos modelos escolares hegemônicos. Entre outros aspectos, a escola considera a cultura e o repertório local e o tempo despendido pelos alunos no transporte feito em canoas com motor, conhecidas como bongos.
“A escola indígena, que une conhecimentos científicos aos nossos, é importante para fortalecer o nosso povo, para a manutenção dos nossos saberes, para entender o que está acontecendo no mundo e para a comunidade saber se posicionar diante do não-indígena, e o que vai aceitar ou não. Escola é resistência”, resume André.
O relato de André compõe um cenário muito mais amplo e preocupante. Contextos semelhantes de silenciamento e opressão como os vividos pelas comunidades Baniwa e Coripaco na educação formal são comuns Brasil afora e se estendem para além das questões étnico-culturais, produzindo outros ecos de exclusão.
Para se ter uma ideia, foi somente no século XX, com a Constituição de 1988, que a educação no Brasil passou a ser entendida como um direito social de todas e todos. No entanto, sua qualidade esbarrou na ausência de um projeto que visasse a construção de uma escola que contemplasse as identidades nacionais. Neste percurso tortuoso, a diversidade ao invés de ser compreendida como um potencial, passou a ser obstáculo.
Elizabeth Macedo: “O projeto de escola pública do Brasil foi construído em torno de um padrão simbólico de escola referente a quem sempre esteve nela”
As raízes desse processo são profundas e históricas. O educador Miguel Arroyo, em Outros sujeitos, outras pedagogias (2014), explica que os processos colonizadores pretendiam intensificar uma cultura de homogeneização para validar uma estrutura de sociedade e de valores, suprimindo qualquer diferença. Neste movimento, reduziu-se então a diversidade pedagógica e, com ela, a representatividade de culturas brasileiras no espaço escolar – fator que contribuiu sobremaneira para o aumento da desigualdade no País.
“O projeto de escola pública do Brasil foi construído em torno de um padrão simbólico de escola referente a quem sempre esteve nela, e onde não cabem ribeirinhos, indígenas, quilombolas, ciganos, entre outros”, critica Elizabeth Macedo, docente no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Para a professora, o atual desafio de incluir estas populações é reflexo de um movimento anterior: o da exclusão gerada pela distorção das relações de poder. “Um de seus efeitos é justamente a construção dessas identidades: branco, negro, indígena. É o nome que damos para um conjunto de pessoas como se elas fossem iguais, mesmo não sendo”, explica.
Este processo de discriminação e expulsão de inúmeras populações do Brasil da educação formal é ilustrado, por exemplo, no afastamento da população negra dos espaços de direito e poder, aponta Lucimar Dias, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
“O País se construiu à custa do trabalho dos escravizados e isso se mantém presente ao longo dos processos. Esses grupos foram mantidos afastados das escolas, dos melhores empregos. A manutenção de escolas pobres para os pobres é uma raiz estrutural da sociedade brasileira”, afirma.
Lucimar Dias: “A manutenção de escolas pobres para os pobres é uma raiz estrutural da sociedade brasileira”
Às discriminações por raça somam-se as repetidas violências que crianças, adolescentes e professores sofrem por identidade de gênero e orientação sexual, por serem pessoas com deficiência, ou simplesmente por não se adaptarem ao ritmo e método de escolarização.
André Lázaro, professor e coordenador acadêmico da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), pontua que a uniformidade sempre foi o objetivo da maioria das escolas. “Muitas de nossas escolas têm um padrão eurocêntrico, apoiado na concepção de disciplina autoritária, submissão dos alunos e punição — antes física, agora simbólica, por meio de classificação de notas”.
A Pesquisa Nacional Sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016, realizada pela ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), mostrou que 73% dos jovens LGBTI+ entre 13 e 21 anos foram agredidos verbalmente na escola por sua orientação sexual.
Essa combinação força os que fogem a este padrão a tentar moldar-se a ele, e nisso perder também um pouco de si, ou a simplesmente deixar a escola.
Para Elizabeth Macedo, estes mecanismos de exclusão se perpetuam sob a difundida, porém falsa ideia do Brasil como um país cordial, onde as diferenças coexistem harmoniosamente e não há necessidade de integração. “Só recentemente as políticas afirmativas foram conquistadas e depois de muita luta dos movimentos”, diz.
Uma vez matriculadas, essas crianças e adolescentes esbarram em outra grave questão: a ausência de representatividade de suas culturas. “Nossas escolas são, em sua maioria, produzidas com base na cultura americano-europeia, letrada, da ciência e literatura clássica, e desconsidera outros saberes e formas de manifestação cultural”, diz Elizabeth.
Este “não-pertencimento” se traduz em diversos malefícios, entre eles, a rejeição à escola ou – pior – à sua ancestralidade. “As crianças ficam com vergonha de suas origens e escondem essas marcas”, conta a professora da UERJ.
Para além da falta de valorização das diferentes culturas brasileiras, a docente pontua que o processo de escolarização, muitas vezes, pode ser ainda mais perverso ao trocar o repertório das crianças por outro considerado “certo” ou “melhor”, quando deveria produzir conhecimento a partir da bagagem cultural que elas já trazem.
O processo de escolarização pode ser perverso ao trocar o repertório das crianças por outro considerado “certo” ou “melhor”, quando deveria produzir conhecimento a partir da bagagem cultural que trazem
Essa concepção de educação está alinhada à noção etnocêntrica e de falso evolucionismo que o ocidente carrega, crendo que toda a humanidade caminha em direção ao seu entendimento de civilidade – visão diagnosticada e criticada pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss*. Segundo esta perspectiva, o outro, o diferente, deve ser “corrigido” e a escola seria uma das etapas para atingir essa “civilidade”, daí seu caráter modelador.
“O que estas crianças realmente precisam é ter seus saberes legitimados e se sentirem protagonistas dos seus processos de conhecimento e enquanto sujeitos”, sintetiza Elizabeth Macedo.
Recurso é outro ponto que pesa. Luiz Araújo, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), explica que o investimento per capita em alunos que não estão em áreas urbanas ou em áreas rurais estruturadas precisa ser maior para compensar custos como o de um transporte escolar que percorre maiores distâncias.
Contudo, esse valor adicional calculado de acordo com cada contexto nem sempre é repassado adequadamente, principalmente, por falta de fiscalização. Na prática, o que se vê é o investimento sendo destinado para equilibrar contas de outras áreas já atendidas, normalmente, das zonas urbanas.
Outro fator, segundo o docente, é que as escolas rurais são mais caras por terem, normalmente, professores para menos de 50 alunos. “Há escolas com 12 alunos e é necessário que existam, porque significam a garantia do direito à educação independentemente de onde se viva”, diz.
Logo, na tentativa de equilibrar as contas, as gestões costumam subtrair recursos da formação docente, precarizando as condições de trabalho dos professores. Os mais qualificados, então, acabam migrando para as áreas urbanas.
Araújo elenca ainda uma série de processos econômicos pelos quais o Brasil passou que levaram à desigualdade educacional. “A concentração industrial no centro-sul, o peso do fundo público usado na infraestrutura desses locais, e a arrecadação de tributos estar diretamente vinculada ao consumo e a produção são alguns. Isso vai concentrando o desenvolvimento nessas regiões, com poucas políticas e fundos redistributivos”.
O professor também pontua como um problema a desigualdade entre os municípios e alerta para a necessidade de rever o repasse de recursos entre os entes federados, garantindo o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), valor mínimo a ser investido por aluno para garantir a qualidade do ensino.
Para tanto, Araújo afirma que seria necessário discutir o Fundeb e um novo formato de financiamento para aumentar a participação da União, além de fiscalizar se o dinheiro captado de fato chega às escolas que mais precisam.
Por fim, o cálculo eleitoral prejudica ainda mais este cenário. “Comunidades isoladas, com baixa densidade demográfica, são menos determinantes no cálculo eleitoral dos prefeitos, o que diminui suas possibilidades de ter suas demandas atendidas”, afirma Araújo.
Desenvolver políticas educacionais, bem como propostas curriculares que levem em conta as características étnico-raciais e culturais dessas populações, são estratégias importantes para combater a homogeneização cultural e garantir recursos para a perpetuação destes saberes.
Para Luiz Araújo, são necessárias políticas públicas que nomeiem claramente quem é responsável por executar e custear cada mudança. “Em vários momentos, o Plano Nacional de Educação (PNE) trata de diversidade, qualidade da Educação e acesso, mas não elege responsáveis, então se torna tão somente uma declaração de boas intenções”, diz.
Luiz Araújo: “O PNE trata de diversidade, qualidade da educação e acesso, mas não elege responsáveis, então se torna tão somente uma declaração de boa intenções”
Elizabeth Macedo destaca que, nas últimas décadas, tivemos ganhos significativos em relação à concepção de uma educação mais igualitária, atenta à diversidade nos parâmetros curriculares nacionais, mas que a reação a isso, contudo, foi forte e conseguiu alterar, por exemplo, a versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e aprovar, mesmo que em primeiro turno de Câmaras Municipais, projetos de lei como o Escola Sem Partido.
“A boa notícia é que se essa desigualdade foi produzida, ela também pode ser desconstruída”, diz. “A partir da valorização dessas culturas dentro da escola, esta passa a ser um espaço legítimo para todos e de oportunidades de negociações entre esses padrões culturais”, continua a professora.
A especialista também comemora o fato de, apesar das condições de trabalho e as desigualdades sociais, boa parte dos professores estarem empenhados e atentos a estas questões. “A escola não tem condições de resolver todos os nossos problemas, mas tem papel importante, e muitos professores já trabalham arduamente pela inclusão dessas crianças na escola”, comemora Elizabeth Macedo.