publicado dia 10/05/2021

BNCC na pandemia: ajuda ou atrapalha?

Reportagem:

Por Maria Antonia Goulart e Natacha Costa

Joana (*) é uma mulher baiana que veio para o interior de São Paulo um pouco antes do início da pandemia com sua filha de 7 anos. Tão logo se mudou, a matriculou em uma escola da rede pública municipal local. A interrupção das aulas logo no início do ano letivo impediu que a criança e sua mãe construíssem vínculo com a escola, professoras e colegas. Informada de que a aluna não tinha acesso à internet suficiente para participar de atividades online, a escola organizou um conjunto de atividades impressas em formato de cartilha, que passaram a ser entregues mensalmente à sua mãe com orientações para sua realização. 

Ocorre que, mesmo  sendo alfabetizada, a mãe teve muita dificuldade em ajudar a filha com as atividades. As atividades propostas na cartilha recebida por Joana (*), as mesmas dos demais estudantes da turma, em nada dialogavam com o repertório prévio de sua filha, apresentando-se de forma totalmente descontextualizada e de difícil compreensão pela criança. As fichas apresentavam objetivos e códigos referentes às habilidades a serem desenvolvidas e eram compostas por um conjunto de atividades com múltiplas consignas em cada uma, sempre referenciadas em atividades anteriores do tipo “na atividade 5 preste atenção nas cores dos quadradinhos e copie as sílabas de acordo com o que está na primeira linha; depois leia ou veja qual palavra foi formada”. Esta estrutura se mostrou inadequada especialmente na fase de alfabetização em que se espera que a criança construa suas hipóteses sobre o funcionamento da língua escrita a partir de palavras que fazem parte do seu vocabulário. Por exemplo, utilizando os nomes da criança, seus amigos e familiares, dos locais da escola e do bairro, vai sendo criada uma lista de palavras estáveis a partir das quais vão sendo feitas comparações, identificando aquelas que se iniciam ou terminam com a mesma letra ou que fazem os mesmos sons.  

Apesar dos esforços reiterados, o esforço diário de Joana (*) para mediar a alfabetização de sua filha com o uso da cartilha se mostrou insuficiente. A menina perdeu o interesse e a mãe se sentiu só e incapaz por não conseguir levar adiante as atividades propostas pela escola. Resolveu, então, recorrer à professora da sua cidade natal que elaborou uma série de atividades considerando as questões apresentadas pela menina e passou a enviar para ela pelo WhatsApp, com melhores resultados.

Nesse processo, identificando que a criança não estava realizando as atividades enviadas, a  escola na qual a criança está matriculada acionou o Conselho Tutelar que fez uma visita à família. Joana(*) ficou desesperada porque sabe-se que a visita do Conselho Tutelar é muitas vezes relacionada ao risco de perda da guarda da criança. Joana (*) em momento algum havia desistido da escolarização da sua filha, mas sentiu necessidade de encontrar um caminho alternativo porque a proposta da escola não lhe era acessível e nem efetiva do ponto de vista da aprendizagem da criança. 

O caso real apresentado acima ilustra os desafios que grande parte das escolas brasileiras estão enfrentando no processo de implementação da BNCC. Ele nos ajuda a pensar sobre propostas baseadas em abordagens únicas para todos os estudantes de um mesmo ano de ensino e por outro lado também coloca luz na possibilidade de pensarmos um currículo mais contextualizado, com planos de implementação ajustáveis ao perfil e desafios de aprendizagem apresentados pelos estudantes reais.

Desde a formulação e homologação da Base Nacional Comum Curricular temos afirmado e insistido em duas ideias que, na nossa visão, são imprescindíveis se de fato quisermos partir da concepção de Educação Integral.

A primeira delas diz respeito ao entendimento de que a BNCC não é currículo. O currículo é resultado de um conjunto de decisões tomadas por redes e escolas, de forma democrática e coletiva, que concernem não apenas ao que ensinar, mas também ao para quê, para quem, por quem, onde e como ensinar e avaliar.

Entenda-se aqui que para que a Educação Integral não se converta em uma “carta de boas intenções”, a coerência entre objetivos e práticas é essencial. Deste modo, se o desenvolvimento de competências é colocado como horizonte formativo, o currículo deve refletir não apenas quais conteúdos e habilidades devem ser trabalhados, mas também as metodologias, espaços, tempos, recursos materiais, agentes e formas de avaliação que devem ser articulados para o alcance de tais objetivos. Ainda, para que a concepção de Educação Integral possa influenciar as práticas, o currículo deve ser resultado de um trabalho colaborativo entre todos os profissionais da educação de uma rede, não apenas do trabalho autocrático das equipes técnicas das secretarias. Escolas, professores e professoras não são meros executores de planos de aula. São formuladores do currículo porque são profissionais da docência, conhecem suas realidades e vivem os processos de ensino e aprendizagem cotidianamente. Por essas três razões, têm uma contribuição indispensável na construção de currículos contextualizados e pertinentes nas redes. O reconhecimento das suas práticas e a mobilização de processos coletivos são, assim, aspectos centrais.

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Outra ideia fundamental, é que a Base não deve ser lida como uma lista de habilidades e objetivos divididos por componentes e séries. Considerando as competências gerais como proposta formativa, é fundamental pensar em que medida cada área e componente curricular pode contribuir com a formação integral dos estudantes no sentido do desenvolvimento da sua capacidade de produzir conhecimento e colocá-lo em uso.  Nesse sentido, é fundamental construir propostas pedagógicas nas quais os estudantes formulem questões a partir dos seus interesses e façam parte de percursos de investigação e construção colaborativa de conhecimento. Isso significa que, independente da modalidade organizativa que o(a) professor(a) adote, tanto os projetos, os roteiros de aprendizagem, as sequências didáticas ou mesmo as atividades pontuais ou de rotina, devem levar o estudante a investigar, refletir e construir conhecimento. São processos desta natureza que propiciarão que os mesmos ultrapassem os limites da aquisição passiva de informação e passem a exercitar e desenvolver capacidades como argumentação, pensamento científico, crítico e criativo, comunicação, entre outras.

Maria Antonia Goulart é Mestre em Saúde Coletiva pelo IFF/FIOCRUZ. Bacharel em Direito pela UNB. Experiência na gestão pública como secretária municipal de Nova Iguaçu/RJ, responsável pela concepção e implementação do programa intersetorial de educação integral Bairro-Escola no período de 2005 a 2010. Integrante do comitê gestor do Centro de Referências em Educação Integral. Co Fundadora do Movimento Down e do eLABorando, laboratório maker responsável pela produção de recursos e estratégias educativas em desenho universal e formação de educadores para a inovação, uso de tecnologias, aprendizagem criativa e educação integral inclusiva.

Natacha Costa é diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz e integra o comitê gestor do Centro de Referências em Educação Integral. Atualmente é membro do Conselho Estratégico Universidade-Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Movimento de Inovação na Educação e compõe o conselho consultivo do programa Escolas 2030 no Brasil.

Neste contexto da pandemia, se este trabalho tornou-se por um lado especialmente desafiador, por outro revelou a incompreensão de parte das redes em relação ao papel que a BNCC deve ter neste momento. 

Redes e escolas orientadas pela concepção de Educação Integral têm se preocupado, do ponto de vista do currículo, em empreender uma escuta qualificada das famílias e estudantes de forma a construir propostas que partam das suas realidades, interesses e culturas. A partir disso, os profissionais da educação têm revisto objetivos pré-estabelecidos e construído de forma colaborativa propostas pensadas para períodos mais curtos de tempo (uma semana ou quinze dias) que vão sendo acompanhadas passo a passo pelos professores e professoras e reavaliadas ao final do percurso. Nesse contexto, a aproximação de linguagens entre escola e família é elemento-chave para que essa parceria possa dar resultado.

Na contramão deste movimento, temos visto com perplexidade como algumas redes têm construído materiais completamente inacessíveis para as famílias. Como no caso relatado, as fichas enviadas listam os códigos das habilidades e os objetivos de acordo com os componentes curriculares. Ora, que relevância pode ter a informação de códigos como EFMA1MA05 para uma família? Nenhuma. A consequência desta abordagem centrada na BNCC a despeito de qualquer contextualização ou aproximação com a realidade dos estudantes e suas famílias é a completa perda de sentido. Decorrem disso, a angústia das famílias por se sentirem incapazes de acompanhar seus filhos, o desestímulo de crianças e estudantes em relação à escola e a manutenção de práticas de ensino e avaliação completamente inócuas.

O que a BNCC nos trouxe como possibilidade de transformação está diretamente relacionada à concepção de Educação Integral. Por isso, neste momento, reconhecer com clareza os territórios onde estamos atuando, construir vínculos e constituir práticas que mobilizem os saberes das famílias, das crianças pequenas e dos estudantes é chave. Se a BNCC continuar a ser vista como um documento burocrático e compulsório, no lugar de se configurar como uma oportunidade para a reflexão e revisão das práticas em redes e escolas, seguiremos reproduzindo estratégias que alienam o processo educativo em relação aos seus próprios sujeitos: professores e alunos.

Essa abordagem nunca funcionou e não vai ser diante da necessidade de construir uma escola contemporânea que vai funcionar. Diante de uma crise sistêmica (sanitária, econômica, social, ambiental e educacional) como a que estamos vivendo, a chance de uma concepção de currículo massificada, burocrática e vertical dar bons resultados é absolutamente zero. 

Enquanto não deslocarmos o olhar para os sujeitos dos processos de ensino e aprendizagem, seguiremos colecionando códigos e rubricas, enquanto milhões de crianças, adolescentes, jovens e suas famílias são deixados à deriva por uma escola que teima em operar à revelia dos seus interesses, condições de vida, desafios e sentidos construídos. Uma escola que morre a cada dia porque não serve para absolutamente nada. 

Diante do cenário de agravamento das condições de vulnerabilidade social, do aumento sensível dos índices de evasão escolar e da ameaça de propostas de regulamentação do ensino domiciliar no país que se constituem em grave violação do direito à educação, esvaziar o sentido da escola junto às famílias e estudantes é um risco que não podemos correr. 

*nome fictício

Agradecemos Sonia Pellegrini (Presidente Prudente/SP), colaboradora do Centro de Referências em Educação Integral (CR) e aos membros do conselho consultivo do CR Consuelo Almeida (Salvador/BA), Gina Vieira Ponte (DF) e Guilherme Melo de Freitas (São Paulo/SP) pela leitura prévia deste artigo.

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