publicado dia 30/11/2022

Aracruz: “A escola sofre as consequências da violência em toda a sociedade”, diz Catarina de Almeida Santos

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Na semana passada, aconteceu mais um atentado a escolas brasileiras, agora na cidade de Aracruz (ES). Como costuma ocorrer após esse tipo de ataque, a mobilização de boa parte da sociedade e dos parlamentares gira em torno de culpar a própria escola pública e tentar resolver um problema que é mais amplo, localmente e de maneira repressiva.

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Falam em colocar catracas, polícia, armar professores. Dizem que é culpa do bullying e propõem implantar um serviço de monitoramento de ocorrências de violência escolar, mas não olham para a raiz da questão. Isso é o que explica Catarina de Almeida Santos, professora na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Comitê DF da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação:

“A escola é vítima, não é ela que está causando essa violência. Tem bullying e outras violências, mas não é essa a causa. A sociedade olha como se o problema fosse a escola, como se fosse o lugar da violência, mas ela não está apartada de todo esse contexto, então a escola sofre as consequências da violência em toda a sociedade”, disse Catarina.  

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a especialista contextualizou o aumento de atentados armados às escolas nos últimos anos e explicou os caminhos para enfrentar o cenário. Confira a conversa:

Centro de Referências em Educação Integral: De acordo com o Instituto Sou da Paz, aconteceram 11 atentados armados às escolas brasileiras nos últimos 20 anos, cinco deles ocorridos desde 2019. Nos últimos quatro anos, 15 pessoas foram assassinadas no ambiente escolar neste contexto. É possível explicar os motivos para os atentados que aconteceram nas escolas brasileiras nos últimos anos?

Catarina de Almeida Santos: Esse crescimento a partir de 2019 não é por acaso. De 2017 para cá, há grande alusão ao armamento da população – boa parte dos ataques aconteceram utilizando armas de pais e padrastos militares e colecionadores de armas –, o crescimento dos clubes de tiros e crianças a partir de 5 anos inscritas em institutos e academias pré-militares.

Há ainda o presidente brasileiro e parlamentares promovendo a glamourização do armamento da escola, se espelhando nos Estados Unidos da América, que vê os ataques contra a escola crescerem desde Columbine, e adotou a medida de colocar segurança armada na escola, que nada resolveu, porque não olham para a causa.

Temos que atuar no desarmamento da população e olhar para os grupos extremistas em nossa sociedade e o que está acontecendo após o resultado das eleições, com ataques às pessoas.

Também não adianta olhar para esses atentados contra as escolas como algo isolado, achando que o que está acontecendo na nossa sociedade não adentra os muros escolares. A escola é um aglomerado de pessoas, onde vai ser difícil combater um ataque surpresa, onde as pessoas estão desarmadas, como deve ser. 

CR: Para além da violência estrutural e a facilitação do acesso às armas nos últimos anos, um fator em comum com os atentados de Suzano (SP) e Realengo (RJ) é a radicalização online e a ideologia incel, misógina, cujo alvo são sobretudo as mulheres. Como você analisa esse quadro? 

CAS: Isso está na lógica desse extremismo converservador da nossa sociedade que tem grupos alvos: são sempre as minorias ou maiorias minorizadas, ou seja, negros, mulheres, crianças, LGBTQIA+ e todos aqueles que não estão dentro do que eles entendem como pessoas perfeitas. 

É na escola, sobretudo as públicas, que esses grupos extremistas vão encontrar a diversidade, mas não só. Passeatas, shows e qualquer aglomeração, quanto mais diversa, se torna alvo. Ou encaramos o problema real, ou vamos ver os ataques se multiplicarem – na escola e fora dela.

CR: Você afirmou que, a cada nova tragédia ou atentado violento, a culpa recai sobre a escola, embora ela seja alvo e vítima das violências. Por que isso acontece?

CAS: A escola é vítima, não é ela que está causando essa violência. Tem bullying e outras violências, mas não é essa a causa. A sociedade olha como se o problema fosse a escola, como se fosse o lugar da violência, mas ela não está apartada de todo esse contexto, então a escola sofre as consequências da violência em toda a sociedade.  

A resposta que demos para isso é que nossas escolas estão cada vez mais parecidas com unidades prisionais, porque vivemos em uma sociedade de encarceramento, que aprisiona as infâncias e juventudes por meio de câmeras de segurança, de sua infraestrutura, do currículo e com aplicativos.

Assim, quando não encarcera a população preta, periférica e jovem nas unidades prisionais, mina suas possibilidades de emancipação e rebeldia contra o sistema que o mata através desses processos e currículos escolares que não interessam às infâncias e juventudes, que exige adequação e adaptação, o que vai formatando uma personalidade violenta. Só permanece na escola sem se rebelar quem se adequa a essa vigilância.

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Brasil abriu quase um clube de tiro por dia sob governo Bolsonaro; não é incomum encontrar alvos representados por figuras humanas pretas.

Crédito: iStockphoto

E as consequências são graves. Há anos parte da sociedade vem dizendo que a escola não pode debater política, mas não existe espaço vazio: ou se debate todas as questões políticas ou os grupos extremistas vão abraçar a juventude. 

CR: Está sendo analisado na Câmara dos Deputados o PL 1372/2022, que dispõe sobre a autorização do Executivo para implantar serviço de monitoramento de ocorrências de violência escolar. Como você analisa a proposta e quais são os riscos para a escola? 

CAS: Todas as vezes em que acontecem ataques às escolas, sempre surgem proposições que não encaram o problema, mas querem controlar a educação. O teor desse PL é exatamente isso, mais uma forma de negar o direito à educação da população brasileira. 

A quantidade de casos de violência dentro da escola é infinitamente menor do que os casos que acontecem ao redor dela. E quando olhamos para os casos internos, vemos questões como a infraestrutura, o currículo e a organização, que provocam essas violências dentro da escola. 

Além disso, a escola produz e reproduz tudo que temos na sociedade, inclusive seus graves problemas, porque são os sujeitos sociais que vão para dentro da escola. Não tem como achar que a escola é um lugar independente da sociedade, então não adianta tentar resolver os problemas só a partir dela.

CR: O que é preciso para promovermos uma cultura de paz e prevenir novos casos de violência extrema?

CAS: Não podemos pensar em cultura da paz nas escolas quando, por exemplo, a deputada mais votada de São Paulo sai com uma arma na mão porque discorda de alguém, quando os sujeitos vão para escola violentados de todas as formas possíveis. Também não adianta colocar polícia dentro da escola, porque o papel dela é evitar que a violência chegue lá, não atacar a escola. Só teremos cultura da paz se trabalharmos a sociedade como um todo. 

“A contribuição da escola é desnudar essas violências que estão aí, desnaturalizar a barbárie cotidiana que vivenciamos. Não temos outro caminho além de oferecer uma educação radicalmente crítica”, diz Catarina de Almeida Santos.

O sarampo e a paralisia infantil estão voltando porque as famílias estão contra a vacina, porque cresce a cultura da negação da Ciência. As pessoas passam fome, os trabalhadores estão submetidos à lógica da uberização, e a classe média acha que tá tudo bem. A polícia mata descaradamente a população preta e periférica, a sociedade destrói a natureza, mata a população indígena, cresce a população carcerária e das unidades de socioeducação. É um país que mata as diferenças, que assassina os diversos, em que as igrejas, o Estado, são capazes de disseminar essas coisas, as pessoas no dia a dia produzem esse caldeirão de violência. 

Então precisamos reverter todas essas questões, encará-las na escola, no trabalho, em todas as instâncias. É desarmar a população, desmontar clubes de tiros, acabar com institutos pré-militares e escolas militarizadas. 

Também é garantir o direito à educação junto com os demais direitos e deixar a escola ser escola, criança e adolescente ser criança e adolescente, construindo limites a partir do diálogo, entendendo que eles não são propriedade de suas famílias, mas sujeitos que precisam ser formados nessa família, na escola, na sociedade.

Na perspectiva educacional, a escola vai ter que politizar o currículo. Tem que debater política, não a partidária, mas discutir politicamente todas as mazelas da nossa sociedade: entender a lógica de grupos extremistas, de violência racial, de gênero, contra os mais pobres e a periferia. 

Precisamos discutir a educação na contramão da educação padronizada, é ir à raiz, na perspectiva freiriana, e ser uma escola do oprimido, não do opressor. A contribuição da escola é desnudar essas violências que estão aí, desnaturalizar a barbárie cotidiana que vivenciamos. Não temos outro caminho além de oferecer uma educação radicalmente crítica.

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