publicado dia 17/08/2023
“Aprendizado também está na canoa e no igarapé”, defende diretora de escola indígena de Cucuí (AM)
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 17/08/2023
Reportagem: Ingrid Matuoka
🗒️ Resumo: Na EE Indígena Tenente Antonio João, em Cucuí, São Gabriel da Cachoeira (AM), os sábios ensinam as crianças e adolescentes sobre as plantas medicinais e os conhecimentos curriculares vêm atrelados a projetos significativos para sua cultura, como a roça e a pesca. A falta de condições para realizar esse trabalho, contudo, se faz presente e limita as possibilidades da escola. Quem conta essa experiência de educação escolar indígena é a gestora da unidade, Maria Lucia Valerio Silva.
A rotina da diretora escolar Maria Lucia Valerio Silva é atípica. Para apoiar e acompanhar de perto o trabalho docente, às vezes são necessários dois dias de viagem de barco pelos rios da Amazônia.
Leia + Saiba mais sobre o que é a educação escolar indígena
A matriz da EE Indígena Tenente Antonio João, gerida por Maria Lucia, fica em Cucuí, um distrito a 200 quilômetros de São Gabriel da Cachoeira (AM), município com a maior predominância de indígenas do Brasil. Localizada a 890 km da capital Manaus (AM), a escola possui 11 salas anexas distribuídas pelo território. Geograficamente distantes da matriz, o acesso a muitas delas é difícil.
Tal configuração é uma forma de atender o direito à Educação das comunidades indígenas, para que os adolescentes não precisem deixar suas casas para concluir os estudos. A garantia desse direito, contudo, é parcial.
“Nas salas anexas falta energia, internet, materiais, livros, banheiros. Muitos professores só têm o Ensino Médio e há cargos vagos. A implementação do Novo Ensino Médio é uma utopia e não houve formação para isso”, relata Maria Lucia, que é formada em Licenciatura em Matemática e Química pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e especializada em Gestão Escolar pela mesma instituição.
A precariedade se estende ao transporte escolar. “Desde 2019 não recebemos nenhuma ajuda e isso tem causado muita desistência, porque as salas funcionam nas comunidades, mas temos alunos de outras comunidades que ficam sem ter como chegar à escola”, diz a gestora.
Entre todas as preocupações, talvez a maior delas seja com a merenda escolar, que não atende nem à realidade cultural e diversa dos indígenas, nem à quantidade necessária para todos. “Vem muito pouca comida. Além disso, há comunidades em que as escolas, sob responsabilidade do município, não recebem merenda há 2 anos, ou recebem muito pouco, e nós compartilhamos o alimento com eles. Muitas famílias não querem mais matricular os filhos porque não vai ter transporte e merenda”.
Para reverter este cenário, é preciso que as políticas reconheçam a centralidade da educação escolar indígena, tanto pela garantia do direito à educação em si, quanto pelo papel de liderança que as escolas exercem nas comunidades e no acesso a demais direitos.
“Aqui a escola é psicólogo, assistente social, elabora documentos e resolve problemas junto com as famílias. Mas a educação escolar indígena não é prioridade para o governo. Espero que eles consigam olhar com mais atenção à nossa realidade, porque é essa educação que abre portas para nossas crianças, seja para viver e melhorar a vida aqui, ou para sair e buscar algo que queiram em outros lugares, desempenhando outros papeis”, explica Maria Lucia.
A EE Indígena Tenente Antonio João atende do Ensino Fundamental ao Médio e Educação de Jovens e Adultos, com quase 400 estudantes e 45 professores. As salas anexas são todas de Ensino Médio.
Localizada na fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia, a escola recebe estudantes destes países, muitos deles também indígenas. Por aqui, a escola atende principalmente os povos Baré, Baniwa, Kuripako, Piratapuya e Tariano.
Para somar forças para enfrentar todos estes desafios e trocar experiências, Maria Lucia convocou outras três escolas próximas e do mesmo tronco linguístico, Aruaque, para realizar em conjunto a jornada pedagógica no início deste ano letivo.
“É um desafio muito grande a questão da prática. A maioria de nós fomos formados para trabalhar em escolas de brancos, não com o nosso cotidiano e nossas vivências. Quando se dá aula, é em Língua Portuguesa, não na língua nativa, então isso é uma grande dificuldade”, afirma Maria Lucia.
Após a jornada pedagógica, que parte do material predefinido pela Secretaria Estadual de Educação e é adaptado à realidade e demanda de cada comunidade, os professores retornaram às salas anexas para conduzir os trabalhos.
Desde 2020, quando a diretora assumiu a gestão, os educadores se empenham em tirar os estudantes de dentro das quatro paredes da sala e trabalhar por meio de projetos. Este ano, as turmas estudam e colocam em prática ações ligadas ao empreendedorismo, coleta de cipó, cestaria, plantas medicinais, pesca, estudo de campo e um projeto especial, Yane Kupixa, que significa “Nossa Roça” em Português.
A EE Indígena Tenente Antonio João é uma das 100 escolas brasileiras que fazem parte do Escolas2030, um programa global de pesquisa-ação de escolas que são ‘laboratórios de inovação’ para uma educação integral e transformadora.
“É uma plantação que envolve famílias, alunos, professores, o pessoal do administrativo, todo mundo. É um momento de socializar, fazer algo diferenciado e mostrar que o aprendizado e conhecimento não estão só na sala de aula, mas em todos os espaços, numa canoa e num igarapé”, afirma Maria Lucia.
Na matriz e nas salas anexas, os professores também estão cultivando canteiros com plantas medicinais. “Tem um sábio que orienta e explica onde vão encontrar a planta, como é a vegetação, como é a extração e seu uso”, conta a gestora, que encontra motivação para seguir com o trabalho no engajamento que os estudantes e suas famílias demonstram.
“Eles gostam do trabalho coletivo na roça, de merendar juntos. É significativo para eles. Mesmo sábado, quando tem atividades, os estudantes e as famílias vêm, participam e mostram a alegria de estar aqui”, celebra Maria Lucia.