publicado dia 15/06/2023
Compromisso Nacional Criança Alfabetizada é avanço, mas precisa de revisão para não ampliar desigualdades
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 15/06/2023
Reportagem: Ingrid Matuoka
Nesta segunda-feira (12/6), o governo federal lançou o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. De acordo com especialistas, a política de alfabetização traz avanços em relação ao programa anterior, mas depende de ajustes e definições para promover aprendizagens significativas e não ampliar desigualdades, sobretudo no que diz respeito à concepção de alfabetização que traz e na proposta de premiar quem obtiver melhores resultados.
Leia + “Não temos um único método de alfabetização”, diz professora de Sobral (CE)
“A política está muito melhor estruturada. Ela olha para os vários eixos que sustentam boas práticas de alfabetização e há uma organização sistêmica, considerando as responsabilidades de cada ente federativo”, observa Patrícia Diaz, diretora executiva da Comunidade Educativa CEDAC.
O Compromisso Nacional Criança Alfabetizada também traz como avanço não defender um único método de alfabetização.
Os estudos e pesquisas produzidos nas últimas décadas, sobretudo liderados pela educadora argentina Emilia Ferreiro, mostram que alfabetização não é uma questão de método, muito menos se for uma proposta massificada para todo o território nacional.
A ideia, portanto, é que municípios e professores tenham autonomia para tomar essas decisões com base em seus contextos locais e demandas de cada turma.
Por outro lado, a política indica que a avaliação terá a mesma matriz de referência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
“A [especialista em alfabetização] Telma Weisz diz que a avaliação induz o currículo, então a política assume uma concepção de alfabetização a partir do que propõe o Saeb”, explica Giovana Zen, Presidente da Rede Latino-Americana de Alfabetização, entidade que publicou uma nota técnica para avaliar o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
A matriz do Saeb é pautada essencialmente pela fluência, por codificar e decodificar, pelo conhecimento sobre letras, sons, palavras, frases e textos simples, uma visão mais restrita do que é a alfabetização.
“A avaliação tem um baixo nível de expectativa. Isso afunila todo o currículo”, aponta Patrícia Diaz
“Não corroboramos perspectivas de alfabetização descontextualizadas das práticas sociais, como algo mecânico, um código a ser apropriado e simples relação entre letra e som. A reflexão sobre o sistema de escrita precisa acontecer dentro das situações comunicativas reais, nas quais as crianças possam atribuir sentido ao que estão produzindo, assim como fora da escola lemos e escrevemos para algum propósito comunicativo”, detalha Giovana, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com pós-doutorado em Alfabetização, orientado por Emilia Ferreiro.
“A avaliação tem um baixo nível de expectativa. Isso afunila todo o currículo, que se torna muito raso para formar cidadãos que saibam ter autonomia, discernir fontes de informação e emitir interpretações mais complexas”, complementa Patrícia.
Para Maria Thereza Marcílio, presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, há ainda outro risco: “Sabendo das desigualdades e das carências, principalmente nos municípios, não dizer quais concepções de infâncias e de alfabetização a política tem, dá margem para pacotes prontos de fundações empresariais, editoras e grupos que assediam os municípios, que acabam aceitando por falta de condições de eles próprios formularem”.
Outro ponto que corrobora essa percepção de qual é a concepção implícita de alfabetização que o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada traz é a meta de que todas as crianças estejam alfabetizadas ao final do 2º ano do Ensino Fundamental, o que a política atribui erroneamente ao Plano Nacional de Educação (PNE), que na verdade indica o 3º ano para tanto. Quem faz essa previsão do 2º ano é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“A alfabetização começa no nascimento e não termina nunca”, afirma Maria Thereza Marcílio
“A alfabetização começa no nascimento e não termina nunca. Mas para organizar o trabalho da escola, é importante pensar que pelo menos dos 0 aos 10 anos a criança está no processo de construção e apropriação do conhecimento da leitura e da escrita. Encerrar isso no 3º ano do Fundamental é não levar em conta que as crianças não se desenvolvem todas por igual e que não é porque estou ensinando a mesma coisa que todas elas vão chegar no mesmo lugar”, pontua Maria Thereza.
A partir deste entendimento, em 2022 entrou em vigor a Lei 14.407/22, que inclui a alfabetização plena e a capacitação gradual para a leitura ao longo da Educação Básica como deveres do Estado.
A diretriz da nova política do MEC desconsidera, ainda, a diversidade de entrada das crianças no Ensino Fundamental. “Crianças que vêm de meios letrados costumam se alfabetizar mais rápido”, lembra Patrícia.
O Compromisso Nacional Criança Alfabetizada prevê prêmio para gestores que trabalham com práticas pedagógicas e de gestão exitosas no campo da garantia do direito à alfabetização e na diminuição das desigualdades educacionais, sociais e raciais. “Reconhecimento é fundamental, mas a forma como a política propõe que isso seja feito pode aumentar as desigualdades”, diz Patrícia.
A especialista explica que políticas de promoção de equidade precisam oferecer mais e melhores condições para quem menos as tem: “As escolas que mais precisam de doações, formação e recursos geralmente não conseguem ter o mesmo nível de competição nesses prêmios para, justamente, receber o que precisam para melhorar a qualidade da educação”, argumenta a diretora executiva da Comunidade Educativa CEDAC.
“Equidade é ajustar esse desequilíbrio de condições que há no nosso país historicamente”, diz Giovana Zen
“Equidade é ajustar esse desequilíbrio de condições que há no nosso país historicamente”, complementa Giovana, da Rede Latino-americana de Alfabetização. A desigualdade impacta diretamente crianças e famílias negras, indígenas, periféricas e rurais, contrastando com a proposição da política de promover equidade racial e social.
Os prejuízos também dizem respeito à aprendizagem dos estudantes, já que esse tipo de recompensa costuma produzir o treino das crianças para um bom desempenho nas avaliações.
“Mais do que isso, as escolas tendem a ignorar e excluir quem têm mais dificuldades, que não vão ajudar nos concursos, o que é de uma violência sem igual. Há outras formas de valorizar o trabalho docente, uma rede que funciona bem, sem precisar de premiação por desempenho. Bons salários, plano de carreira, escolas com boa infraestrutura. E isso tem que ser para todos, não só para os melhores”, reforça Maria Thereza.
Diante do que a política anunciada pelo Compromisso Nacional Criança Alfabetizada propõe, as especialistas defendem a revisão da concepção de alfabetização, avaliação e premiação.
“E que isso seja feito junto com as entidades formadoras, principalmente as universidades públicas, grupos de pesquisas, quem vem atuando nas redes e trabalha com formação”, indica Maria Thereza.
Além da revisão na política pública de alfabetização, atenção ao eixo da formação de professores e gestores é central para a viabilidade das ações dentro das escolas. Isso é essencial inclusive porque as equipes terão de lidar com o desafio de implementar a nova política com obras do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de editais anteriores, que chegarão às escolas até o ano que vem.
“A formação pode ser uma aliada para lidar com materiais que têm questões de qualidade e as formas de utilizá-los. Os cantinhos de leitura que a política cita, por exemplo, existem em muitas unidades, mas a qualidade, diversidade de livros disponíveis e o trabalho em torno da formação de uma comunidade leitora nem sempre contribuem para a alfabetização. Temos problemas a enfrentar”, diz Patrícia.