publicado dia 10/04/2023

Ataques em escolas: em busca de saídas para os casos extremos de violência

Reportagem:

O que quer que se diga ou escreva sobre os massacres que têm acontecido nas nossas escolas, com frequência cada vez maior, será pouco, insuficiente, pequeno para dar conta do quão complexos e avassaladores são. Sempre haverá uma sensação de que não é tudo, há mais, há o insondável, o misterioso.

Monstruoso, absurdo, brutal, sinistro, horrendo, surreal… palavras não dão conta do que tem ocorrido e nem dos desdobramentos que transcendem as comunidades escolares específicas diretamente afetadas e mergulham pessoas sensíveis de todo o país e até fora dele, em um estado que mistura sentimentos fortes de medo, atordoamento, revolta, impotência, fracasso… Novamente as palavras são insuficientes.

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Beatriz de Paula Souza é psicóloga e mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). É autora de artigos e capítulos sobre Psicologia e Educação e participante do Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (GIQE).

Mas precisamos e somos inexoravelmente convocados a pensar, para tentar compreender e tomar atitudes, providências para tentar lidar com o rescaldo desses incêndios devastadores e tentar evitar ou diminuir a possibilidade de outros. Estas palavras inserem-se nessa busca. Enfeixam-se forças, tendências e funcionamentos diversos nesses ataques, coletivos e individuais. O fato de já serem muitos permite evidenciar características presentes na maioria deles, fortalecendo a necessidade de pensarmos muito mais no que há de social, coletivo, institucional neles.

Por exemplo: grupos que cultivam o ódio, as armas, a misoginia, o supremacismo branco, o nazismo e outras elementos típicos da extrema direita desde muito tempo, especialmente adubados e irrigados nos anos Bolsonaro, mostram sua cara nas vestimentas, nas postagens em redes sociais, nas atitudes e gestos presentes na maioria dos autores dos ataques.

Preocupa-me a ausência que tenho notado, nas reflexões a que tive acesso, da consideração do que passamos nos quase dois anos de isolamento social por causa da pandemia de covid-19 – maior ou menor conforme principalmente fatores socioeconômicos nesse país marcado pela desigualdade social. 

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Dores como luto e violência doméstica, fome e miséria e a restrição extrema e prolongada nas relações sociais nos fragilizaram e ensinaram um outro modo de viver e nos relacionar, especialmente aos mais novos, que tiveram um tempo proporcionalmente maior de suas vidas passado nessa circunstância. 

Emergimos frequentemente nervosos, pouco tolerantes com outros, tristes, frágeis e defensivos. Aprender, ou reaprender, a vida coletiva tornou-se um desafio quando ela voltou a ser mais possível. 

As escolas sabem bem disso, pois a volta ao ensino presencial foi marcado por um nível de agressividade, uma frequência de brigas entre alunos, de alunos com professoras e vice-e-versa enorme, além de crises de ansiedade, automutilação e suicídio.

A palavra de ordem era “acolhimento”, por um lado, mas por outro era recuperar o conteúdo perdido. Na prática, essa última venceu, sobrepujando largamente a primeira. 

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Há muito se diz que a Educação precisa ser integral. Precisa visar ao desenvolvimento do ser humano em suas diversas e indissociáveis dimensões: social, emocional, física, intelectual e cultural.

Se antes a adoção efetiva desta concepção de fundo nas instituições escolares já vinha se mostrando necessária, na volta do isolamento social da Covid tornou-se imperiosa. Não havia como fechar os olhos diante, no mínimo, da demanda por cuidado emocional e no âmbito das relações sociais, comunitárias no cotidiano escolar. 

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Mas, de modo geral, não aconteceu e a ânsia pelo avanço na aquisição de conteúdos predominou. A urgência de pensar sobre e fazer acolhimento de estudantes e de toda a comunidade escolar foi arrefecendo.

De agosto do ano passado para cá, os ataques em escolas tornaram-se bimestrais. Mais recentemente ainda, tivemos uma sequência assustadora de dois em dez dias: um na E.E. Thomázia Montoro, em São Paulo (SP) e outro na creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC). 

Este último superou nossos piores pesadelos, espalhou um choque que transcendeu as fronteiras brasileiras e lançou-nos a um patamar ainda superior de urgência em implementar soluções para os ataques em escolas, ou ao menos tentar!

Caminhos inspiradores para enfrentar a violência nas escolas 

Há muito que, como psicóloga especializada em dificuldades e sofrimentos na vida escolar, me encanto e me encho de esperanças ao deparar-me com escolas e educadores que têm a ousadia de adotar para valer a perspectiva da integralidade na Educação, rompendo com formas concretas e práticas convencionais de se fazer escola. Nelas, por exemplo, a vida coletiva, com seus desafios e possibilidades, é valorizada tanto quanto a aprendizagem de conteúdos. 

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Muitas têm assembleias gerais periódicas nas quais estudantes têm vez e voz, aprendendo na experiência – e não em livros e aulas expositivas verticais – funcionamentos e valores democráticos, que incluem lidar com divergências e diversidade de modos de pensar, ser e aprender. Cultiva-se a vida coletiva – e, assim, as relações – nas práticas cotidianas de estudo e pesquisa em pequenos grupos, nos quais os estudantes trabalham juntos e se ajudam, com a tutoria/supervisão/cuidado dos educadores. 

Quando há conflitos e problemas de relacionamento, a ideia é serem encarados e lidados como oportunidades de aprendizagem desse pilar do trabalho educativo que é a esfera dos relacionamentos. 

Em instituições assim, as expressões de cada um, a autonomia e o protagonismo, têm muito mais espaço para se desenvolver do que nas escolas convencionais e, assim, pessoas e suas relações (como as de bullying) passarem despercebidas e deixarem de ser cuidadas.

Tomei contato com experiências assim de muitos modos: textos, movimentos, eventos e visitas presenciais a várias. Exemplos: os livros República de Crianças de Helena Singer e Volta ao Mundo em 13 Escolas do Coletivo Educ-ação; os movimentos Românticos Conspiradores e Rede de Escolas Democráticas; as Conferências Nacionais de Alternativas para uma Nova Educação – CONANE – e instituições como o Cidade Escola Aprendiz e o Centro de Referências em Educação Integral. 

Cieja Campo Limpo e EMEF Campos Salles: oásis de paz em territórios com problemas de violência 

Visitei várias escolas que adotam esta perspectiva e, nessas visitas e nos contatos com as fontes citadas logo acima, nunca soube de situações de violência que lembrassem vagamente os ataques que vêm se sucedendo. 

Pelo contrário: ouço sempre relatos de que as profundas transformações de objetivos e modelo de funcionamento implementados trouxeram uma atmosfera de muito mais paz e colaboração, com uma grande diminuição da violência. 

Destaco duas delas, considerando que o tema desse escrito são os ataques escolares, sua produção e saídas possíveis. São elas: a EMEF Campos Salles e o CIEJA Campo Limpo. Ambas se localizam em São Paulo e em territórios com índices preocupantes e conhecidos de violência, bastante adversos portanto. 

A EMEF Campos Salles está na gigantesca comunidade de Heliópolis. Nela, após acontecimentos violentos, educadores, estudantes, pais e organização de moradores do entorno operaram mudanças paradigmáticas na estrutura de poder. República de crianças e jovens, estudantes participam de forma efetiva na gestão da vida cotidiana da escola, com cargos eletivos com os quais se fazem presentes na gestão de seus diversos aspectos, entre eles o convívio. 

A associação de moradores do bairro está sempre dentro da escola. A comunidade escolar deu início a um evento de Heliópolis que se tornou um importante acontecimento não apenas desse território, mas da cidade: a Caminhada pela Paz, que acontece uma vez por ano pelas ruas do entorno dessa linda instituição de Educação.

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Destaco, ainda, o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos – CIEJA – Campo Limpo. Localizado no Capão Redondo, extremo sul de São Paulo, passou por profundas mudanças após seus educadores e estudantes decidirem “parar de fingir que ensinavam e aprendiam”, segundo a grande e freiriana educadora Eda Luiz, à época diretora da escola. Pararam tudo e partiram para inventar uma escola “de verdade”. 

Os estudantes criaram propostas inteligentes e que respeitavam seu modo de vida e necessidades para estudar como, por exemplo, poder frequentar diferentes períodos da escola, uma vez que é comum trabalharem variando turnos. Inventaram um cantinho de “não fazer nada”, um lugar gostoso, cheio de plantas, para o qual têm liberdade de ir quando sentem necessidade por algum motivo.

Apropriada do espaço escolar, sua comunidade toda fez daquele um lugar belo, com muito verde enfeitando seus ambientes, entre outros enfeites. Esta experiência de muitas histórias emocionantes, lugar de acolhimento e pertença, tornou-se um oásis de paz em um território com muitos problemas de violência.

Histórias assim são comuns no meio das instituições educativas de educação integral, que ousaram romper com o modelo escolar convencional, fundado na homogeneidade e da verticalidade, princípios estes que tendem a operar “terraplanagens” nas diferenças. São lugares que desfavorecem a aprendizagem de como se relacionar, pela ênfase quase total no trabalho individual, entre outras de suas características.

Assim, experiências educacionais não convencionais como as relatadas acima indicam um dos muitos caminhos a serem trilhados na tentativa de superar a eclosão cada vez mais constante de extremos de violência nas escolas, além de muitas outras questões problemáticas de nossa Educação e sociedade.

Conhecer estas experiências, promover o diálogo entre escolas e profissionais para compartilhamento de preocupações e estratégias coletivas podem ser férteis e alentadores caminhos neste momento tão desafiador. Mas sobretudo há que lembrar que a saída deve ser educativa: aprender coletivamente, mobilizar o saber pedagógico e resgatar os valores humanos são a chave para o enfrentamento digno e efetivo a violência nas escolas. Esse é o nosso papel.

*Agradeço a Natacha Costa  pela leitura atenta e bem-vindas sugestões. 

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