publicado dia 24/02/2023

Tempo integral cresce no Brasil: isso significa mais qualidade educacional?

Reportagem:

Os dados do Censo Escolar 2022, divulgados no começo de fevereiro pelo  Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apontam para uma ampliação da jornada nas escolas brasileiras. Especialistas explicam que isso não significa, necessariamente, mais direitos ou melhores aprendizagens.

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Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, 11,4% das crianças estudaram em tempo integral em 2022. Nos anos finais, os estudantes matriculados em tempo integral representaram 13,7%. Em 2019, eram 10,1% e 10,3%, respectivamente. 

No Ensino Médio, 20,4% dos estudantes da rede pública estavam matriculados em tempo integral em 2022. Na rede privada, esse percentual era de 9,1%. Em 2019, eram 12% e 6,3%, respectivamente. 

“Verificamos que houve crescimento importante no tempo integral. Isso é um esforço individual dos estados e municípios que assumiram esse protagonismo”, detalhou o ministro da Educação, Camilo Santana, durante a coletiva de divulgação dos resultados. 

Guillermina Garcia, gerente de programas e projetos do Cenpec, concorda: “Nos últimos anos, tivemos um enfraquecimento das políticas de educação integral, como a descontinuidade do programa Mais Educação. Contudo, tivemos territórios e escolas que estruturaram ou avançaram nos seus trabalhos, independentemente desse papel relevante que as políticas deveriam ter e não tiveram nesse período”. 

Para quem foi uma possibilidade e uma escolha continuar a trabalhar na perspectiva da educação integral, puderam colher frutos quando a pandemia impactou as escolas. “Elas tiveram a oportunidade de responder de uma outra forma às demandas, porque a maioria já tinha um conhecimento mais aprofundado da comunidade, das famílias e dos estudantes, que foi fundamental para tentar manter o vínculo”, explica Guillermina.

Nesse sentido, a pandemia evidenciou a potência do que propõe a educação integral: olhar para cada uma das crianças e adolescentes de forma integral, considerando seu contexto social, o território e o acesso aos direitos básicos. 

“A Educação Integral não é uma modalidade, mas a característica central que a escola pública precisa desenvolver para que, de fato, possamos fazer uma educação de qualidade social, inclusiva, que responda ao que está posto na nossa Constituição Federal. Que impacte inclusive nos resultados de aprendizagem, mas também na qualificação da permanência, na articulação intersetorial e no desenvolvimento global de crianças e jovens”, explica Jaqueline Moll, pesquisadora e professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

Mais tempo na escola demanda mais garantia de direitos

Os dados do Censo Escolar 2022 reforçam que a ampliação do tempo na escola, não se traduz, necessariamente, em mais qualidade da educação, garantia de direitos ou mais aprendizagens. O primeiro ponto a se considerar é que hoje há, no mínimo, 1,04 milhão de estudantes fora da escola, mas o cenário pode ser ainda mais grave. 

“Temos uma crise dos dados, porque sabemos quantas ingerências político-partidárias atravessaram órgãos como o Inep, e um ambiente de muita miséria. Então a principal estratégia hoje é promover a busca ativa e a articulação intersetorial entre diferentes setores das políticas públicas para garantir que os estudantes possam estar na escola”, aponta Jaqueline.

Um estudo realizado pelo Unicef em setembro de 2022, por exemplo, apontou dois milhões de crianças e adolescentes de 11 a 19 anos fora da escola por trabalho infantil e dificuldades de aprendizagem. “Garantir condições de permanência e de aprendizagem é essencial. Senão, estudantes matriculados em tempo integral, sobretudo negros, pobres e periféricos, vão acabar sendo excluídos da escola por estarem vivendo esse tipo de problema”, aponta Mônica Rodrigues, chefe de educação do Unicef.

Assim, amplia-se a desigualdade de oportunidades entre quem pode e quem não pode frequentar uma escola em tempo integral, o que leva ao agravamento das históricas desigualdades do Brasil.

“As experiências com ótimos resultados de busca ativa e trabalho intersetorial envolvem a comunidade e lançam mão das estratégias que fazem sentido no contexto próprio”, explica Guillermina. 

Mais tempo na escola para quê?

Uma vez matriculados e com garantia de permanência em tempo integral na escola, é preciso olhar para a concepção de educação ofertada. Alguns modelos de tempo integral oferecem atividades no contraturno que repetem o que acontece no tempo regular ou que são completamente apartadas do currículo. 

“Precisamos de um currículo integrado e diversificado, que amplie as experiências e o repertório dos estudantes nesse tempo expandido”, define Guillermina.

André Lázaro, diretor de Políticas Públicas da Fundação Santillana no Brasil, retoma os estudos sociológicos sobre capital cultural de Pierre Bourdieu (1930-2002) para explicar que nem todos os grupos sociais têm as mesmas condições de acesso ao mesmo conjunto de formações, práticas e hábitos. Isso traz outra desigualdade, fazendo com que crianças e adolescentes de famílias mais escolarizadas tenham mais chances de ter sucesso educacional.

“Educação é uma herança de classe. O papel da educação integral é agregar capital cultural, ampliar as linguagens, espaços e possibilidades de acesso ao patrimônio de conhecimentos da humanidade, que impactam diretamente na aprendizagem. Tudo isso sem abandonar ou colocar em uma hierarquia de prioridade o grafite de rua, as tradições musicais de cada comunidade, por exemplo”, destaca André.

Para Jaqueline, tudo isso é fundamental para que crianças e jovens possam compreender sua realidade, sua história, seu papel na cidadania e, a partir disso, recriar suas condições de vida – de maneira coletiva e articulada à política pública.

“A escola precisa ser um potente centro de debates dos problemas da vida comunitária, articulada ao que tem de melhor na sociedade. Ela não pode ser um ensaio que mantém a escola separada da vida, como se o sucesso pudesse ser individual”, diz. 

Relembrando o educador Anísio Teixeira (1900-1971), que dizia que a escola não prepara para a vida, mas é a vida em si, André também defende que a escola dialogue sobre as inquietações das juventudes.

“Há temas que estão vetados, como racismo, política, sexualidade e identidade de gênero. Quando veta esses temas, veta o desenvolvimento integral. É impedir que crianças e jovens se conheçam, se protejam, tenham relações de respeito e atenção consigo mesmo e com o outro, e saibam viver em sociedade”, explica.

Educação integral não pode depender só de estados e municípios

Para dar corpo e sustentação a todo esse projeto, o apoio de uma política nacional é central. Por isso, Mônica destaca a urgência de aprovar o Sistema Nacional de Educação (SNE), previsto no PNE, e que visa efetivar o regime de colaboração entre União, Estados e municípios. 

“Educação integral implica em ter salas de aula adequadas, refeitório, alimentação, saneamento, água potável, formação de educadores, diálogo com as comunidades tradicionais e as culturas do território. Não pode ser uma escola única, feita a partir da cabeça urbana e branca. Não pode acontecer sem uma política nacional, porque estados e municípios não conseguem dar conta desse tipo de desafio”, pontua.

Jaqueline Moll defende, ainda, que o histórico da educação integral no Brasil seja resgatado para ancorar as políticas públicas necessárias para o contexto atual. Desde 1932 havia no Brasil uma trajetória de construção de uma educação integral para todos e todas. “Está na obra da Escola Parque de Anísio Teixeira, nos CIEPS, passa por Maria Nilde Mascellani, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e a pedagogia dialógica”, relembra Jaqueline.

Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) prevê a ampliação da jornada no Ensino Fundamental. Em 2007, se estrutura o Mais Educação. “Ele visava superar as 4 horas na escola, a rigidez curricular e o arcaísmo das práticas pedagógicas”, descreve Jaqueline, que foi responsável pelo desenho e implementação do programa que chegou a mais de 60 mil escolas e cumpriu sua meta de expansão da jornada para o Ensino Fundamental.

Em 2014, é aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece a meta de ofertar o tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas do país. “Tínhamos todo um projeto de Educação Integral que na Educação Infantil caminhava com o Proinfância e no Ensino Médio com o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio. Tudo isso ia avançando, com apoio técnico e financeiro, até que em 2016 a agenda é atropelada por um governo autoritário”, indica Jaqueline.

A especialista também destaca o Teto de Gastos, o descumprimento do PNE e o congelamento da aplicação de recursos do pré-sal como graves impedimentos à garantia de direitos dos estudantes.

O aumento do tempo integral e a Reforma do Ensino Médio

Boa parte do aumento da jornada escolar no Brasil se deve à Reforma do Ensino Médio que, dentre outras mudanças, instituiu o tempo integral. Em 2019, 12% dos estudantes da rede pública estavam matriculados em tempo integral. Em 2022, esse número passa para 20,4%. 

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Para Jaqueline, a Reforma é questionável do ponto de vista do direito a uma educação de qualidade e garantia de condições de acesso e permanência. 

“Ela não compõe um projeto maior de educação. No lugar, rompe com a educação integral no Ensino Fundamental e leva para o Ensino Médio com o objetivo de aumentar o tempo para itinerários de dita escolarização profissional. O problema é que nem todas as escolas conseguem fazer isso e pequenas experiências educativas para o mundo do trabalho não constituem uma profissionalização”, explica Jaqueline.

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Junto à divulgação do Censo Escolar 2022, o Inep também publicou uma Nota Técnica sobre o Novo Ensino Médio. Ela aponta as dificuldades de implementação da política pelo país, ainda em curso, e a falta de coerência entre as redes. 

“Eles indicam que a Reforma está com problemas maiores do que os apontados na mídia. Cada rede estadual está interpretando de forma diferente o que é o Novo Ensino Médio. Também falta interlocução com os estudantes e, de fato, vincular a etapa com os conhecimentos do mundo do trabalho, para que os jovens possam se inserir produtivamente e dignamente no mercado”, afirma André.

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