publicado dia 24/02/2022
Educar sem bater: como enfrentar a banalização da violência como forma de se relacionar
Reportagem: Ingrid Matuoka
publicado dia 24/02/2022
Reportagem: Ingrid Matuoka
Em 2020, o Disque 100 registrou o maior número de denúncias de violências contra crianças e adolescentes desde 2013. Foram 95,2 mil casos registrados, sendo 67% deles praticados em casa e 59% pelos pais da vítima, de acordo com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Leia + Gestão democrática: como escutar as crianças na escola?
“A maior parte dessas violências é praticada dentro de casa, por pessoas muito próximas, da relação afetiva dessas crianças, o que gera uma confusão enorme para elas – que mensagem deixamos com essa atitude?”, questiona Ana Paula Rodrigues, articuladora da Rede Não Bata, Eduque e coordenadora do grupo de adolescentes mobilizadores.
Conheça o site, o Instagram e o TikTok da Rede Não Bata, Eduque, onde divulgam informações confiáveis e orientações para combater castigos físicos e humilhantes e incentivar a participação de crianças e jovens.
De acordo com a Lei Menino Bernardo (13.010/2014), “a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto”, e define castigo físico como o uso da força física que resulta em sofrimento físico e lesão e o tratamento cruel e degradante como o que humilha, ameaça e ridiculariza.
Para analisar a origem dessas violências e como combatê-las, o Centro de Referências em Educação Integral entrevistou Ana Paula Rodrigues. Confira os principais trechos da conversa:
Ana Paula Rodrigues: Os componentes que estão por trás dessas violências são questões culturais e sociais, construídas ao longo do tempo e naturalizadas, como se fossem normais só porque sempre aconteceram assim.
Um país como o Brasil, o último a abolir a escravização, tem em seu cerne uma questão forte com as relações de poder, de alguém que se julga superior ao outro, sejam adultos e crianças, brancos e negros, patrão e empregado, homem e mulher. É a banalização da violência como forma de se relacionar com o outro.
APR: Cada criança reage de uma forma. Pode ficar com mais medo, retraída, se tornar agitada e agressiva, e apresentar dificuldades de aprendizagem e de se relacionar. Muitas das crianças que são vítimas de violências também acabam praticando ou sofrendo bullying. Mas o que acontece é que ela vai entendendo que a maneira de mediar e resolver conflitos e diferenças, naturais e necessárias em nossa vida, é por meio da violência.
Outra consequência é o uso desmedido de medicamentos, como a Ritalina, para problemas que não são de saúde mental das crianças, mas das violências que elas sofrem.
Nas formações e rodas de diálogos que promovemos pela Rede, também percebemos que essas questões não ficam só na infância e na adolescência. Os adultos sempre relatam as marcas, as dores que ficaram das violências que sofreram quando pequenos.
E o outro ponto é que a maior parte dessas violências são praticadas dentro de casa, por pessoas muito próximas, da relação afetiva dessas crianças, o que gera uma confusão enorme para elas – que mensagem deixamos com essa atitude?
APR: As violências contra crianças e adolescentes partem da concepção de que eles não são sujeitos de direito. Então a chave é compreendê-los como tal, assim como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerado como uma das melhores leis do mundo e que inspira outros países. Mas ainda temos um longo caminho para que isso se transforme em realidade, pois elas ainda são muito invisibilizadas na nossa sociedade.
Então é preciso educar por meio do diálogo, do exemplo, colocando limites com respeito, para que isso não precise vir por meio de violências. Se o castigo físico e humilhante acontece é porque a palavra já perdeu o valor, por isso valorizar o direito à participação é revolucionário.
As crianças e adolescentes aprendem que são corresponsáveis em todas as áreas de suas vidas e se tornam cidadãos mais críticos, que conseguem ter uma leitura de mundo ampliada, algo fundamental para pensar formas de educar e cuidar e disciplinar que não sejam reproduções das violências aprendidas.
APR: A escola precisa, primeiro, abrir-se para isso. Se ela se mantiver no lugar de só repassar conhecimentos, não vai nem perceber que os estudantes estão sofrendo. Depois, é ter canais abertos de diálogo e pensar todas as disciplinas escolares como processos que tenham conexão com a vida delas, a fim de possibilitar mais recursos internos às crianças e adolescentes para lidarem com questões e processos da vida, para aprenderem novas formas de se relacionar e não reproduzirem dinâmicas violentas.
“Também é necessário que a escola esteja articulada com a rede de proteção do território e promova formações para os educadores sobre o tema e a respeito do ECA, que já tem todas as aplicações de medidas protetivas para diferentes casos”, diz Ana Paula Rodrigues.
Também é necessário que a escola esteja articulada com a rede de proteção do território e promova formações para os educadores sobre o tema e a respeito do ECA, que já tem todas as aplicações de medidas protetivas para diferentes casos.
É importante também dialogar com as famílias para convidá-las a serem parceiras na missão de que crianças, adolescentes e famílias se sintam bem e estejam em harmonia, ao menos, na medida do possível diante de cotidianos muito difíceis e violentos. E não é criminalizar, porque muitas famílias simplesmente não sabem o que fazer.
Uma estratégia interessante é apresentar a elas dicas de educação positiva, pequenas coisas que podem ser feitas no dia a dia, como elogiar o que é positivo e prestar atenção quando sentem raiva, momento que remete à atitudes covardes e perigosas.
Por parte do poder público, é importante criar e implementar programas que orientem as famílias a conhecerem novas estratégias de educação, como define a Lei Menino Bernardo, que tem caráter preventivo, não punitivo.